A maior universidade do estado começou o primeiro semestre letivo na última semana de pés e mãos atados por engenhosa matemática e entraves burocráticos, imersa no turbilhão da crise orçamentária que assola as instituições públicas de ensino superior de Norte a Sul do país. Amargando perda de quase 40% de seus recursos em relação a 2020, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) teme chegar ao fim do ano endividada e com o caixa no vermelho.
Na tradução numérica, são efeitos de um corte e bloqueio de verbas da ordem de R$ 103 milhões. Em bom português, se o cenário não mudar nos próximos meses, poderão ser afetados contratos de terceirizados, pagamento de bolsas e até mesmo o plano de retorno a atividades presenciais.
A UFMG faz coro a outras universidades pela recomposição orçamentária pelo menos nos moldes de 2020 e desbloqueio de 13,8% de seus recursos para conseguir pagar as despesas até o fim do ano.
“A situação é gravíssima e o cenário, desolador. Na história da UFMG, nunca vimos uma situação tão drástica”, afirma a reitora Sandra Regina Goulart Almeida, que falou pela primeira vez sobre a situação orçamentária da instituição em entrevista exclusiva ao Estado de Minas.
Só a UFMG perdeu mais que todas as outras universidades federais sediadas em Minas reunidas. Conforme mostrado na semana passada, levantamento do EM feito com sete das 10 instituições do interior aponta que elas têm pelo menos R$ 73 milhões a menos em caixa.
Com um orçamento que saiu de R$ 261 milhões ano passado para R$ 157,5 milhões, a volta às atividades presenciais se anuncia ainda mais distante, mesmo quando o cenário epidemiológico o permitir. Isso porque deverão fazer parte das despesas correntes a adequação da ventilação em certos espaços físicos, compra de equipamentos de proteção individual (EPIs) e contratação de mais pessoal para limpeza e segurança.
Mas, se mantido o cenário de cortes, a conta não fecha. Sem reservas no caixa, não sobra dinheiro para comprar EPIs nem para aumentar número de funcionários. Pelo contrário. A reitoria já trabalha com a hipótese de reduzir a equipe de terceirizados que, além da administração, compreende os dois setores-chave para a retomada de aula no campus: limpeza e segurança. Também podem ser afetados pagamento de bolsas, manutenção predial e obras atualmente em andamento.
Mesmo não tendo zerado seu caixa de capital (direcionado a obras, equipamentos e investimentos), como ocorreu em outras universidades, pagar contas de água, luz e telefone também se tornou um desafio e toma ares de endividamento.
“A UFMG é séria e preza pelo seu comprometido por responsabilidade financeira. A curto prazo é dramático, a médio e longo prazos é desastroso, não apenas para a universidade, mas para o desenvolvimento do país em todas as áreas do conhecimento. Hoje, 95% das pesquisas do Brasil são feitas em universidade públicas. Para Minas, com 11 universidades e 19 institutos federais, será dramático”, destaca Sandra.
No malabarismo das readequações, algumas rubricas são consideradas prioridade, caso das ações de ensino, pesquisa e extensão e da assistência estudantil. “É o futuro de muitos estudantes que entram na universidade, por meio da Lei de Cotas. Eles vêm de escolas públicas, não têm muitos recursos e nós temos a responsabilidade de garantir sua manutenção para que se formem.”
Bloqueios
Assolados por sucessivos cortes orçamentários desde 2014, as universidades dizem terem sido surpreendidas pela engrenagem da União que as levou ao limite. A expectativa era de pelo menos manter os mesmos recursos de 2020, visto o papel das universidades na luta contra o novo coronavírus.
Mas, o que ocorreu foi o inverso e com bloqueios a conta-gotas, numa espécie de agonia sem fim. Nessa escalada, a UFMG começou perdendo ano passado 16,5% (R$ 34 milhões) no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA), que saiu aprovado do Congresso com corte aumentado para 18,9% (R$ 39 milhões).
Mas, o pior ainda estava por vir: os vetos do presidente Jair Bolsonaro, que reduziram em R$ 1,1 bilhão o orçamento do Ministério da Educação (MEC) para o ensino superior e afetou de maneira não linear universidades e institutos. Ou seja, ainda não se sabe quais critérios foram usados, mas os percentuais de cortes foram distintos e atingiu, principalmente, recursos de capital.
A UFMG foi atingida em cheio em 26,72% (mais de R$ 50 milhões). Na sequência, houve ainda o bloqueio de 13,8% do orçamento do MEC, o equivalente a R$ 2,79 bilhões, de forma linear em todas as instituições federais de ensino. Para a Federal de Minas, essa última ação significou perdas de R$ 76 milhões (36,5% do orçamento de 2020).
A reitora Sandra Goulart explica que os cortes do veto só podem ser recompostos por meio de Projeto de Lei do Congresso Nacional (PLN). “O veto é um corte permanente na LOA, enquanto o bloqueio pode ser revertido, dependendo da situação financeira, por meio de acordo do MEC com o Ministério da Economia”, diz.
E a situação, que já estava grave, ficou ainda pior com o revés derradeiro. O único dispositivo que permitiria à universidade recuperar um pouco de fôlego também foi abarcado pela União: a rubrica recursos próprios, provenientes de convênios de cooperação com estado, municípios e empresas.
“Eles devem ser previstos no orçamento da instituição e, por isso, o governo pode interferir. No nosso caso, sofreram corte de 52%. De R$ 52 milhões arrecadados ano passado, só poderemos tocar agora R$ 25 milhões. Se passar disso, os valores são contabilizados como forma de superávit primário para o governo, ou seja, vai direto para cofres da União”, lamenta a reitora. “Não tenho como tentar resolver a situação da UFMG por meio de parcerias, pois a legislação não me permite arrecadar nem encontrar soluções.”
Decretos agravam situação das federais
Universidades federais de todo o país ameaçam parar por falta de caixa, diante de uma perda total de mais de 20% em relação ao orçamento de 2020. Em Minas, muitas afirmam ter fôlego para ir no máximo até setembro. A insegurança financeira de todas elas é agravada por um vaivém de percentuais e decretos impostos pelo governo federal, o último deles no fim de semana, que castigam ainda mais as universidades e institutos federais.
“O orçamento de 2021 foi uma tragédia e pode ser considerado o mais confuso orçamento feito em décadas”, dispara o reitor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Marcus David, vice-presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).
Desde o ano passado, a Lei Orçamentária Anual (LOA), que define os gastos da União para o ano seguinte, está dividida em duas unidades: uma dentro do orçamento geral do Ministério da Educação (MEC) e outra denominada “programações condicionadas à aprovação legislativa”, a chamada “regra de ouro” para cumprir a lei de responsabilidade fiscal.
“Em 2020, 40% dos recursos da LOA da UFMG estavam alocadas nessa segunda unidade e, ao longo do semestre, conseguiu-se liberação, pois fizemos o que chamamos de ‘orçamento de guerra’, além de complementações para ações contra a COVID-19”, conta a reitora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Sandra Regina Goulart.
“Em 2021, por causa da lei de teto dos gastos públicos, o valor foi invertido. Temos 40% liberados do nosso orçamento e 60% nessa fonte nova condicionada à aprovação legislativa”, continua.
Na sexta-feira passada, o Ministério da Economia anunciou liberação de recursos por meio de portaria, mas a esperança de fôlego durou pouco. “Foi liberado parte desses 60% para empenho (deixando o orçamento de 2021 sem parcela condicionada), mas não mudou nada o cenário. Era uma situação dramática e não havia outra opção que não a liberação. Mas, 13,8% desse recurso ainda continuam bloqueados”, explica Sandra.
A portaria trouxe outra surpresa, que obrigou reitores a se debruçarem novamente sobre as contas: para liberar orçamento, usou o superávit de universidades. Para as universidades que o tinham, foi o golpe final e o fim da esperança de que a arrecadação extra de 2020 salvaria 2021.
Nesse emaranhado de contingenciamentos, mesmo se desbloqueados os 13,8%, o orçamento do MEC está de volta ao patamar de 2006. “É incompatível com a situação atual das universidades, que aumentaram seu número de estudantes, cursos e estrutura física. Custos de manutenção como água e de estrutura predial, 15 anos depois, também são muito superiores. Além disso, as universidades estão muito mais bem equipadas, com pesquisa de ponta, e a UFMG é exemplo disso”, destaca a reitora.
Para Sandra, parar é fora de questão: “A UFMG não pode se dar a esse luxo. Muita gente depende da universidade não apenas para se formar: temos que manter dois hospitais e mais do que nunca a sociedade precisa da federal. Precisamos continuar com pesquisas e testes de COVID-19, temos sete candidatas vacinais no país e, das três mais adiantadas, uma delas é da UFMG”. “O não parar é ato de resistência”, completa Marcus David.
Fonte: Junia Oliveira/Estado de Minas
Foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press