Opinião
Não quero rosas!
O desafio de enxergar o amor e perceber o íntimo além das aparências
Aludindo ao Pequeno Príncipe, só quando o “ver” é algo mais, quando passa a ser “enxergar”, a gente está diante daquilo que realmente importa. Já que, como afirma o autor do livro, Saint-Exupery: só se vê bem quando se vê com o coração, já que o essencial é invisível aos olhos…
É curioso como esse livro é uma ironia. Ele é uma síntese, à la Vinícius de Morais, em seu questionamento de como é possível a vida ser a arte do encontro, se existem tantos desencontros na vida. Digo isso, porque Saint-Exupery foi o exemplo clássico de um homem que parece não ter enxergado muito bem, em seu casamento, o que é o amor para além das ilusões que cintilam diante dos olhos.
Espero não lhe escandalizar, mas o autor do Pequeno Príncipe não foi bem um cultivador de “rosas”. Sua história estava mais para menino descompromissado e travesso…Peter Pan, talvez. Suas grandes paixões, ao que tudo indica, eram escrever livros e a aviação. Por causa delas, ele ficou, por anos, mais tempo longe de casa do que perto de sua esposa, Consuelo.
Pense bem, se não é um absurdo!! Um homem que abandona o aconchego do lar, chamando de certeza o que é só um momento de prazer? Sim, ele era um mulherengo, um homem de “muitos amores”. Algo evidentemente e, é claro, que só acontecia na França do século XX…
Em sendo um belo romance, muito provavelmente, o Pequeno Príncipe é uma “indireta” que alude às tensões do relacionamento entre Exupery e sua esposa. O escrito é uma grande metáfora do que é a vida. Sim, há uma maldição no desejo. Há algo de instável e inseguro no amor…
Apaixonar-se por alguém, significa, num primeiro momento, nos identificar com quem que amamos. Nessa simbiose, temos a impressão de que a “rosa” que desperta nossa paixão residirá para sempre protegida e cativa. Nos iludimos com o delírio de que os outros são reféns da visão ou da projeção que sobre eles fazemos…
Dizem que o amor, no sentido de paixão, é cego. Me arrisco a discordar. O amor, nos seus inícios, sofre de diplopia. Vê dois de si. Apaixona-se por sua imagem refletida no espelho.
O amor só amadurece no “segundo ato”, quando se descobre que: mora, no amor, a solidão. É nesse momento que se passa das impressões e da duplicação ao “enxergar” do limite, da incompletude, da falta. E esse é sempre o momento mais desafiante de uma relação: descobrir o “outro” para além da nossa idealização.
Se bem atravessada, a desilusão que, num primeiro momento parece matar, é a condição para fazer surgir a vida. É aqui que se descobre a liberdade em saber que é possível ser, para além de quem amamos, sem que sua ausência signifique nos desfazer…
Há, de fato, uma maldição no desejo! Uma maldição nas rosas… Ou seria, afinal, nosso olhar sobre rosas, sobre a grama do vizinho ou sobre “maçãs proibidas” que está amaldiçoado?
Que Deus, como ao profeta Samuel, nos abençoe o “enxergar”. Que ele nos ensine a ver o verso no avesso, a perceber o íntimo, o profundo o lev (o coração) (1 Sm 16, 7). O Senhor nos dê lucidez diante da maldição do desejo, da grama do vizinho, das maçãs proibidas, das rosas. Dê-nos a lucidez diante da sina da vida:
Não quero rosas, desde que haja rosas.
Que hei-de fazer das coisas
Que qualquer mão pode colher?
Não quero a noite senão quando a aurora
A fez em ouro e azul se diluir.
O que a minha alma ignora
É isso que quero possuir.
Para quê?… Se o soubesse, não faria
Versos para dizer que inda o não sei.
Tenho a alma pobre e fria…
Ah, com que esmola a aquecerei?
(Fernando Pessoa)
SOBRE PADRE SAMUEL FIDELIS
Pró-reitor de comunicação do Santuário Basílica Nossa Senhora da Piedade. Ordenado sacerdote em 14 de agosto de 2021, exerceu ministério no Santuário Arquidiocesano São Judas Tadeu, em Belo Horizonte.