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Justiça


Maníaco do Anchieta: prisões injustas tiraram a vida de um e a sanidade do outro

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Maria Suzana, irmã de Queiroz, segura uma foto do homem que ficou 18 anos preso injustamente, em frente a um dos muitos quadros pintados por ele — Foto: JOÃO GODINHO / O TEMPO

Eugênio Fiúza de Queiroz passou 18 anos na cadeia e morreu em dezembro de 2021, quatro meses após receber um pedido de desculpas de Romeu Zema; Paulo Silva amargou cinco anos atrás das grades e, até hoje, nenhuma indenização foi recebida

Em 1995, o estupro de 15 meninas em Belo Horizonte gerou grande comoção em busca da identificação do criminoso, que ganhou a alcunha de “Maníaco do Anchieta”. Quase 30 anos depois, o caso segue como um dos maiores exemplos de injustiça do país, uma vez que duas pessoas ficaram presas por crimes que não cometeram. Com informações de O Tempo.

Eugênio Fiúza de Queiroz foi preso pelos crimes sexuais e colocado em liberdade em 2012, após outro homem ser acusado, e a detenção custou sua própria vida. Ele passou 18 anos atrás das grades e, hoje, vive apenas nos coloridos quadros deixados para sua família. Já para Paulo Antônio Silva, de 77, os cinco anos na cadeia custaram a visão – parcialmente afetada após quase ser assassinado na cadeia – e a sanidade mental, problemas que levaram suas filhas a pedirem sua interdição na Justiça.


Nos dois casos, apesar dos erros já terem sido provados, nenhum centavo de indenização foi pago pelo Estado de Minas Gerais até o momento. As histórias deles serão contadas nas reportagens do segundo dia da série O custo da injustiça.

 

 

Artista plástico, Queiroz morreu aos 71 anos em dezembro de 2021, quatro meses após receber um pedido de desculpas oficial do governador Romeu Zema (Novo). Vivendo em Guarapari (ES), no litoral, ele tentava recuperar, na imensidão do mar, um pouco da liberdade que lhe foi negada durante quase duas décadas. Segundo a irmã dele, Maria Suzana Queiroz, de 77 anos, não restam dúvidas de que a morte foi uma consequência da prisão injusta.

“Deixou sequelas físicas e emocionais. Ele teve um câncer na laringe e um problema em consequência da hepatite que pegou na cadeia. Se curou de tudo, mas nunca se livrou da mania de perseguição. Não gostava de médico, não acreditava neles, e tinha um problema sério de coração que não tratava. No dia 28 de dezembro de 2021, ele morreu em um hospital de Vila Velha. Ninguém da minha família teve problema coronário, por isso temos certeza de que a morte foi consequência de todo o estresse que viveu”, garantiu a familiar.

A arte foi o único escape encontrado por Queiroz quando estava encarcerado. Nas visitas semanais, Maria levava cartolinas e giz de cera, uma vez que, nas unidades prisionais, ele não era autorizado a pintar com tinta a óleo. “Ele fazia cada coisa linda, pintava as cartolinas, desenhava nas paredes do presídio. Mas a arte o ajudou a sair melhor do que esperávamos, ela tornou mais leve todos esses anos que ele ficou preso. Apesar disso, quando saiu, ele não tinha cabeça para trabalhar”, completou a irmã.

O defensor público Wilson Hallak Rocha foi um dos responsáveis pela ação que tirou Queiroz da cadeia. Em entrevista a O TEMPO, ele conta que o artista plástico foi reconhecido por uma vítima quando estava com uma namorada em um banco de uma praça. “Ele negava desde o princípio, mas foi levado para a delegacia, e, depois da repercussão da prisão, apareceram cinco casos de pessoas que teriam sido violadas por ele. A polícia olhou o modus operandi, a região onde aconteciam os fatos e, principalmente, a aparência física dele. Naquela época, não tinha banco de dados de DNA”, lembra.

Ele foi condenado por cinco estupros, apesar de ter sido denunciado por oito crimes sexuais, mas acabou inocentado em três deles por serem crimes que aconteceram depois de ele já ter sido preso. “A polícia deveria ter verificado. Se o ‘maníaco’ estava preso, como os crimes continuavam acontecendo? Apesar disso, ele recebeu 37 anos de condenação, passando 18 deles atrás das grades e sofrendo todo tipo de de privação, todo tipo de violência física e psicológica”, argumentou Hallak.

O defensor público lembra que, já no fim do período encarcerado, Queiroz teria chegado a pensar em tirar a própria vida, tendo, inclusive, guardado uma lâmina de barbear dentro de uma Bíblia. “Quando ele foi pegar a lâmina, a Bíblia caiu e abriu em um Salmo que já não me lembro mais qual foi, mas que o fez começar a chorar e desistir do suicídio. Coincidentemente ou não, um mês depois ele passou a ser atendido pela Defensoria Pública, que conseguiu a revisão criminal que o pôs em liberdade”, lembra, sem esconder a emoção, o defensor.

Cinco irmãos e mãe morreram durante tempo na cadeia

Durante os 18 anos na cadeia, Queiroz também foi impedido de se despedir da maior parte de sua família. Cinco de seus seis irmãos e a mãe morreram no período. Preocupada com o dano que essas perdas causariam no homem, que já suportava inúmeras violências dos outros presos e de policiais na cadeia, Maria Suzana seguia visitando-o sem contar a verdade sobre a perda de quase toda a família.

Além da irmã, Queiroz também tem um filho, que só conheceu depois de deixar o presídio. “Ele tinha medo do pai, pois cresceu com a informação de que o pai era um estuprador. Quando o Eugênio foi inocentado, ele não teve tempo de conviver muito com filho, já que logo ele morreu pela fragilidade que o corpo tinha depois do tamanho da violência do Estado”, diz Hallak.

Nostálgica, a irmã do homem afirma que todos que conheceram seu irmão esperavam que ele viveria muitos anos e que poderia contar toda sua história. “Daria um filme maravilhoso, um livro. Quando mais jovem, ele viajou muito, foi para a América Central, fez amizade com um guerrilheiro. Depois, viveu nos Estados Unidos. Era uma pessoa livre, aventureira, por isso foi um sofrimento muito grande para ele ficar preso”, lembra Maria Suzana, sem esconder a saudade do irmão.


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