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Jovem negro é condenado a 10 anos de prisão com base em reconhecimento falho

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Em uma tarde em março de 2020, três homens armados entraram em uma casa no município de Ituverava, no interior de São Paulo. Levaram um carro, um cofre, bebidas, armas e joias.

Um deles é descrito pelas vítimas como um jovem negro, com uma tatuagem de Cristo no pescoço, nomes nos braços e uma pequena cicatriz na testa. O outro um garoto branco, que também possuía tatuagens nos braços e no pescoço. Do terceiro, elas mal se lembram.

Poucos minutos após o crime, os vizinhos chamaram a polícia. No local, foi feito um reconhecimento com um banco de dados que um dos agentes tinha em um laptop. O menino branco, Bruno, foi imediatamente reconhecido. O outro, não.

Na delegacia, os policiais mostraram a foto de um garoto com características semelhantes ao jovem negro, mas as vítimas não conseguiram identificar. Mesmo assim, dias depois um pedido de prisão preventiva foi expedido e foi feito o reconhecimento pessoal.

Colocado ao lado de dois jovens brancos, funcionários da delegacia, e de um rapaz negro sem tatuagens, João Paulo dos Santos, 21, foi identificado.

Diferentemente do que diziam os depoimentos, ele tem uma carranca vermelha tatuada no pescoço, uma coroa preta na testa e os braços cobertos com imagens de cemitérios.

Réu primário, João Paulo foi condenado a 10 anos e 4 meses de prisão por roubo à mão armada, um crime que diz não ter cometido. A sentença é baseada no reconhecimento das vítimas. No processo, o investigador da Polícia Civil responsável pelo caso afirmou ter dúvidas sobre o seu envolvimento.

“Eu, pessoalmente, tenho dúvidas se foi o João Paulo, mas as vítimas reconheceram sem dúvidas”, disse o policial civil Thiago Bastianini, em audiência feita por videoconferência.

Ajudante no Sucatão de Foieiro, João Paulo foi preso no dia 25 de março enquanto trabalhava. Tentou provar que, no momento do crime, também estava trabalhando, mas sem vínculo empregatício e controle de ponto, não conseguiu.

Em depoimento, seus colegas diziam que ele era assíduo e que quando não ia ao trabalho “era por canseira”. “O João Paulo não faltou nenhum momento”, disse um deles. “O João não faltava porque não deixávamos. Nós chamávamos ele para trabalhar, porque ele morava muito perto”, afirmou outro.

Por outro lado, Bruno Lopes Gabriel, 20, confessou o crime e recebeu a mesma condenação. Em depoimento, disse que não conhecia João Paulo e que ele não participou do roubo, mas não poderia informar quem eram os comparsas.

“Os outros dois eu não posso falar, pode custar minha vida”. Além disso, um exame papiloscópico (de impressões digitais) comprovou seu envolvimento, mas as digitais de João não foram encontradas. O terceiro participante nunca foi identificado.

Em sua manifestação, o MP-SP (Ministério Público do Estado de São Paulo) afirmou que a dúvida do investigador sobre a autoria de João Paulo não deveria ser levada em consideração, pois o policial civil “não estava presente no momento dos fatos e as vítimas foram firmes” no reconhecimento.

Menciona também que o fato de que os exames papiloscópicos não tenham confirmado a participação não inviabiliza a comprovação, por existirem outras provas, mas não diz quais. E aponta haver contradição entre os depoimentos dos réus, pois, embora um tenha negado o envolvimento do outro, não delatou os comparsas.

Segundo nota enviada por email em nome do promotor responsável pelo caso, Erton Evandro de Souza David, a denúncia do MP foi baseada nas provas apresentadas pela acusação e pela defesa. Segundo ele, a sentença atende aos interesses da sociedade. “Com a decisão, as vítimas, tão vulneráveis e traumatizadas, estão -pelo menos por hora- protegidas”, disse.

O promotor afirma que o reconhecimento pessoal seguiu todas as formalidades legais e, assim, as vítimas “de forma clara e induvidosa, atestaram que os réus deste processo eram autores deste crime hediondo”.

O procedimento deve seguir o artigo 226 do Código de Processo Penal, que determina como deve ser o reconhecimento em delegacias de polícia.

A vítima deve descrever o suspeito e ele deve ser colocado ao lado de outras pessoas com características semelhantes às suas. Se for necessário, a autoridade deve preservar a identidade da vítima.
As provas produzidas, diz David, são “extremamente fundamentadas”. “A autoria ficou totalmente demonstrada: um dos réus é confesso e o outro –por todas as provas produzidas– sequer teve seu álibi confirmado.”

Ele não respondeu sobre a incompatibilidade das tatuagens de João Paulo, nem se há contradição na fala das vítimas, uma vez que, apenas quando confrontadas pela defesa sobre as características do réu, afirmaram que ele colocou um lenço no pescoço para que não olhassem sua tatuagem.
Assim como a denúncia, a sentença é baseada no depoimento das vítimas –o juiz responsável, Leonardo Bredas, considerou frágeis as testemunhas de João Paulo, invalidando seu álibi.

“As palavras das vítimas, em crimes patrimoniais, normalmente praticados na clandestinidade, são de extrema valia, especialmente quando descrevem com firmeza o modus operandi e reconhecem, do mesmo modo, as pessoas que praticaram o delito”, afirma Bredas.

A sentença lembra também as dúvidas a respeito da participação de João Paulo no crime, mas esclarece que as evidências apresentadas por ele não são suficientes, enquanto a acusação mostra provas seguras e satisfatórias.

Para a defesa, porém, a base do conjunto probatório apresentado pela acusação não obedeceu ao Código de Processo Penal, aspecto ignorado na condenação.

“Ainda na delegacia um policial disse para a vítima: ‘Você não pode ter dúvidas ao fazer o reconhecimento’. Se ela não pode ter dúvidas, ela teria que ter 100% de convicção, e essa prova é totalmente contaminada”, disse Christopher Ravagnani, advogado de João Paulo.

A defesa explica que o procedimento violou as regras processuais, pois mesmo após o réu não ter sido reconhecido por imagens, sua prisão preventiva foi decretada, e o reconhecimento pessoal feito ao lado de pessoas sem semelhanças físicas.

“Todas as vezes que a gente conseguia demonstrar que aquela crença que ela [a vítima] tinha não era coerente com a figura do João, ela trazia um detalhe para demonstrar que sim, era o João. Que ela poderia ter se confundido com um pequeno detalhe, ao confundir Jesus com o capeta, mas que ele de fato era o autor”, afirma Ravagnani.

O caso está sujeito a apelação e a defesa irá recorrer no TJ-SP (Tribunal de Justiça do Estado São Paulo). Em caso negativo, ainda será possível recorrer no STJ (Superior Tribunal de Justiça).

Fonte: O Tempo

Foto: Divulgação/TJSP

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