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Estudando por conta própria, morador de rua é aprovado em enfermagem

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Estudando por conta própria, o morador em situação de rua Diego Augusto Pereira, 25 anos, foi aprovado no curso de enfermagem na faculdade Anhanguera, em São Paulo.

Até chegar à universidade, onde passou a sofrer discriminação por sua condição, o estudante viveu momentos de terror e pânico nas ruas do Rio de Janeiro e da capital paulista. Foi brutalmente agredido por policiais nas duas cidades, escapou da morte depois de levar nove tiros, perdendo uma visão e ficou com quatro balas alojadas no corpo. Não obstante, foi ameaçado por traficantes com um cano de arma na boca e quase foi queimado vivo por um grupo de skinheads nazistas, até que um verdadeiro anjo cruzou o seu caminho.

Depois de sete meses nas ruas, Diego conheceu o padre Júlio Lancellotti, pároco da paróquia de São Miguel Arcanjo, na Mooca, em São Paulo, e coordenador da Pastoral do Povo de Rua. “Conheci Diego num café da manhã da população de rua. Era um rapaz muito fechado, mas conversando com ele fui me apropriando de sua história”, conta o padre, que está ajudando Diego a conseguir um trabalho para pagar a faculdade e ter onde morar dignamente, além de uma prótese para o olho perdido.

Diego morava no Tabajaras, favela da zona sul do Rio de Janeiro, e saiu de casa depois de uma série de desentendimentos com o padastro, jardineiro, que nutria ciúmes pela mãe, aposentada. Depois de perambular e dormir nas ruas da capital fluminense, seguiu para Descalvado, para morar com uma ex-cunhada, onde conheceu uma mulher e revelou a ela que aguardava uma pequena herança do pai
biológico. Como não concordou em casar, essa mulher encomendou sua morte. Numa madrugada, deparou-se com um atirador e foi surpreendido com tiros à queima-roupa. Das nove balas que o atingiram, quatro ficaram alojadas em seu corpo, três na cabeça e uma no peito, crime ainda não elucidado pela polícia. Os projéteis não foram removidos pois a cirurgia oferece alto risco de morte.

Ao receber alta, voltou para as ruas e um grupo de PMs o espancou brutalmente. Depois, foi ameaçado de morte por traficantes do Morro dos Macacos, que o confundiram com um membro do Primeiro Comando da Capital (PCC). Seguiu, então, para Juiz de Fora (MG), onde foi agredido na rua com golpes de facão. Na rodoviária, uma mulher pagou sua passagem para Volta Redonda (RJ), onde voltou a ser espancado, desta vez por agentes penitenciários, que alegaram vingança pela morte de um colega por um morador de rua. “Disseram que alguém tinha que pagar por aquilo. Tive o maxilar deslocado e uma costela quebrada”, conta.

Decidiu, então, ir para Campinas (SP), onde passou a dormir num albergue, e foi quase linchado por um grupo de 40 pessoas, acusado de usar drogas nas imediações. “Depois de tanta desgraça, fui para São Paulo, em busca de alguma luz”, relata, lembrando que, na capital paulista, passou a pernoitar próximo a um posto da PM, na Mooca, onde um grupo de skinheads tentou atear fogo em seu corpo enquanto dormia. “Acordei banhado em álcool no rosto e nas pernas. Quando vi, um deles já estava com um isqueiro aceso. Joguei o cobertor e corri”, lembra.

Depois desse episódio, Diego seguiu para um abrigo na Mooca, que disponibiliza computador e internet, e começou a pesquisar a oferta de cursos, até que se deparou com uma propaganda da Anhanguera. Fez o vestibular on-line e, dois dias depois, soube de sua aprovação na unidade Belenzinho. “Estou atendendo a um pedido de meu pai, que sofreu muito com cirrose e um câncer na garganta. Antes de morrer, ele pediu para eu fazer medicina ou enfermagem para cuidar dele e de outras pessoas. Mas, ainda criança, achava lindo, quando ia ao médico e via todas aquelas pessoas vestidas de branco”, diz.

Discriminação e agressão recorrentes no câmpus

Há três meses matriculado no curso de enfermagem da unidade Belenzinho da Anhanguera, em São Paulo, o morador em situação de rua Diego Augusto Pereira vem sofrendo, constantemente, discriminação por parte de colegas e professores. Segundo ele, pelo menos três alunas do mesmo curso deixaram de frequentar as aulas depois que souberam da sua condição. Além disso, afirma, passou a ser solenemente ignorado por professores durante as aulas. O pagamento das mensalidades é outro drama vivido pelo calouro, que foi proibido pela direção de vender balas, seu único meio de sustento, no campus. “Sou discriminado até hoje. Nem me chamam pelo nome”, lamenta.

Entre os comentários preconceituosos que já ouviu, Diego lembra o que partiu de uma roda de estudantes, depois da aula. “Quando passei por aquele grupo, um deles disse, em voz alta, que passou a vida estudando para chegar na faculdade e ser obrigado a conviver com pessoas como essa”, diz, lembrando ainda que, em outra ocasião, uma mulher parou o carro, o chamou e, quando se aproximou, levou uma cusparada no rosto.

Entre os professores, as manifestações de aversão também marcaram o estudante. “Quando tenho alguma dúvida e levanto a mão para perguntar, eles não me ouvem, parece que nem estou na sala de aula, que não existo.” Até mesmo a venda de balas dentro da faculdade foi censurada pela direção. “No início oferecia, mas dificilmente alguém me ajudava. Até que a coordenadoria me proibiu, argumentando que essa prática é antiética.”

Ainda assim, Diego confessa que está decidido a ir até o fim, concluir o curso e partir para a prática. “Estou estudando bactérias, sei que algumas evaporam, no ar e até entram em nossa corrente sanguínea. Já sei diagnosticar manchas no corpo e aprendi que não posso assinar nenhum tipo de documento sem saber a origem do problema. Sei até fazer receituário”, conta, revelando que sua meta é levar essas experiências para as ruas. “Quero ajudar outras pessoas mais na frente. Estou disposto a sofrer, lutar e conseguir meu diploma. Por vários meios, a reportagem tentou contato com o diretor da unidade Belenzinho da Anhanguera, Marcos César Garcia, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.

Otimismo

Diego confessa que a ajuda do padre Júlio Lancellotti tem se tornado fundamental para que seu otimismo não esmoreça. Além de ter feito sua inscrição para o processo seletivo do projeto Bompar, que diariamente atende mais de 10 mil pessoas por dia, entre ,crianças, adolescentes, idosos e pessoas em situação de rua, Lancellotti escreveu uma carta de recomendação para ,a entidade e ajudou Diego a recuperar todos os documentos perdidos nas ruas. “Diego fará as entrevistas necessárias, participará das dinâmicas de grupo e terá condições de acertar o caminho da vida dele”, diz o padre.

Diego conta ainda que está apreensivo com o pagamento da mensalidade do curso, que custa R$ 538,42 e, com um dia de atraso, sobre para R$ 769,17. “Consegui pagar o primeiro mês, mas
agora está mais difícil, a dívida está virando uma bola de neve”, diz. Para ajudar Diego a pagar o que deve e mais alguns meses da faculdade, até que ele consiga se estabilizar com seu novo emprego, Lancellotti postou em sua página do Instagram um resumo da história do estudante e a chave pix para doações (projetocaminhosrua@gmail.com).

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