A ausência paterna nos registros oficiais é uma realidade crescente no Brasil. Em 2018, considerando dados dos cartórios de registro civil entre janeiro e abril, aproximadamente 5,3% das crianças haviam sido registradas apenas com o nome da mãe. Considerando o mesmo período, em 2020, esse índice subiu para 5,8% e, em 2021, foi a 5,9%. Agora, em 2022, o percentual escalou para 6,6%. Isso significa que, somente nos primeiros meses deste ano, o cadastro de quase 57 mil crianças não trazia informações sobre o pai. As informações são do O Tempo.

Os dados são a face mais visível de um problema social que é ainda mais amplo. Estamos falando do abandono paterno, que não é praticado apenas por aqueles que sequer aparecem nos registros de seus rebentos. Não por acaso a expressão “maternidade solo”, que era usada para designar as mães solteiras, agora também é reivindicado por aquelas que, mesmo estando em uma relação, não contam com a ajuda de suas parcerias para a criação dos filhos. Experiência mais ou menos assim foi vivenciada por Daniel Coltrin, 24. “Eu sou mágico e acho que meu pai também era. Tanto que, quando nasci, ele sumiu”, ironiza, afirmando que, tradicionalmente, no Dia dos Pais, a ser celebrado no domingo (14), costuma presentear a sua mãe. “Ela fez esse papel melhor que ele”, complementa.

Embora o abandono afetivo do genitor represente um descumprimento dos deveres do poder familiar previstos na legislação brasileira, citados nos artigos 229, da Constituição Brasileira, e 19, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na avaliação da psicóloga Graziela Alves, há, histórica e culturalmente, um ambiente favorável à negligência paterna – fenômeno que gera uma série de desdobramentos. “Para começar, enquanto eles costumam ser recompensados com melhores perspectivas em seus empregos após o nascimento de um filho, elas tendem a ser punidas, muitas vezes perdendo o emprego”, destaca, indicando como a maternidade parece representar o ápice da desigualdade de gênero na vida profissional. Indicador desse problema, um estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV), de 2017, apontou que quase metade (46%) das brasileiras fica desempregada no primeiro ano depois do parto.

O psicanalista e mestre em psicologia Hugo Bento também critica a forma como se constituiu, em nossa sociedade, um ambiente que normalizou o abandono paterno. “Efetivamente, os homens não costumam ser criados para o desenvolvimento do sentimento de paternidade e também não costumam ser responsabilizados pelo cuidado com o outro”, destaca, sublinhando que esse tipo de papel costuma ser atribuído às mulheres. Contudo, ele lembra que as funções de pai não estão condicionadas exclusivamente à figura do genitor. “Do ponto de vista da psicanálise, a paternidade e a maternidade são funções que podem ser desenvolvidas por outras pessoas que tenham vínculo com a criança – e é importante que haja o vínculo, porque essa função não pode ser desempenhada sem que a própria criança reconheça a autoridade parental”, descreve.

“Eu acredito que, sim, do ponto de vista subjetivo, precisamos de um ser humano que se encarregue dos cuidados e da subsistência – que em psicanálise estão imbuídos na função materna – e de um ser humano que se encarregue da transmissão de valores culturais e de marcadores sociais – ligados ao paterno”, pontua. “Mas, se essas funções serão exercidas por uma só pessoa ou por mais de uma, se serão desempenhadas pelo genitor, pela genitora ou por outra pessoa, pouco importa”, pondera, indicando que os pais, mesmo vivendo e convivendo com seus filhos, podem se abster da paternidade. “Pode acontecer, por exemplo, de essa função, que transmite ordem e concede à criança parâmetros para a construção da identidade, ser desenvolvida pelo avô, pela avó ou até por um amigo da família”, comenta.

“Portanto, a princípio, a ausência física desse genitor não produz, por si, efeito subjetivo na criança. Ou seja, do ponto de vista psíquico, para estruturação psíquica de alguém, essa ausência não será tão significativa, desde que a função paterna seja exercida por outra figura”, observa, sublinhando que, em algumas situações, o que acontece é justamente o contrário: “Há casos em que essa distância é percebida com alívio”.

Bento sinaliza que o problema passa a existir quando uma criança, que vem de um modelo familiar que difere do padrão conjugal e heteronormativo – ou seja, composto por pai, mãe e filhos –, passa a ser confrontada com essa lógica. “Pode haver implicação, sobretudo em caso de comparações negativas e exclusão”, aponta o pesquisador, que, em sua dissertação de mestrado, investigou a adoção homoparental. “Em simultâneo, isso não impede a discussão sobre o porquê de muitos homens não assumirem essa função paternal”, pondera.

Como agir

A psicóloga e psicopedagoga Roneida Gontijo Couto acrescenta que, em situações nas quais os pais não se fazem presentes, é importante que todas as perguntas e inquietações dos filhos sejam respondidas. “Mas é importante que as respostas sejam adequadas à idade e ao nível de maturidade da criança”, recomenda. “Também é fundamental que possíveis frustrações da mãe em relação ao parceiro ou ex-parceiro não sejam transmitidas à prole”, recomenda. Ela alerta que a sensação de rejeição na infância pode, potencialmente, repercutir em traumas, distúrbios comportamentais e dificuldade em lidar com emoções – inclusive na fase adulta.

Tanto Roneida quanto Bento elogiam a iniciativa recente de instituições de ensino que passaram a celebrar o Dia da Família, lembrado no dia 15 de maio. “Com esse movimento, percebemos o reconhecimento de que as configurações familiares são múltiplas, mas que, apesar de distintas entre si, possuem uma estruturação em comum – que passa justamente pelo desempenhar dessas funções paternas e maternas”, situa o psicanalista. “E, para além dessas datas comemorativas, eu acredito que seria oportuno que, nas escolas, existissem projetos que se propusessem a discutir a diversidade de modelos familiares. Esta é, inclusive, uma maneira de estimular o respeito aos colegas e o desenvolvimento de habilidades socioemocionais”, complementa a psicopedagoga.

A preocupação de Roneida Gontijo faz sentido, pois, se a configuração familiar em que a criança está inserida se tornar motivo para que ela seja rejeitada pelos colegas, as consequências disso serão danosas. É o que se pode inferir a partir de um artigo publicado na revista científica fluminense “Estudos e Pesquisas em Psicologia”, em 2015. Segundo a investigação, crianças que se sentem excluídas e indesejadas apresentam risco maior para delinquência, abuso de substâncias, evasão escolar e depressão.


Sobrecarga materna

Além dos impactos na infância, o abandono paterno repercute na sobrecarga das mães, sobretudo no caso daquelas que não podem contar com a ajuda dos pais e não têm acesso a redes de apoio domésticas e institucionais.

Nesse caso, a psiquiatra Christiane Ribeiro, integrante da Comissão de Estudos e Pesquisa da Saúde Mental da Mulher da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), alerta que os níveis de estresse crônicos relacionados ao fenômeno podem levar ao desenvolvimento ou à piora de sintomas psiquiátricos, impactando, por exemplo, quadros de ansiedade e levando a uma perda de qualidade do sono – algo especialmente preocupante, dado que muitas mães têm trabalhado de madrugada para conciliar o emprego com a criação dos filhos. Irritabilidade e diminuição da concentração também são reações comuns.

Vulnerabilidade

Consequências financeiras desse fenômeno também precisam ser consideradas. “Estamos falando de uma injustiça social que chega a ser cruel. As mulheres hoje estudam mais, mas têm remuneração menor do que a de homens que ocupam o mesmo cargo. Quando têm um filho, passam a lidar com uma grande sobrecarga de trabalho, já que tendem a acumular tarefas de cuidado com a casa e com a criança e passam a receber ainda menos – quando não são simplesmente rejeitadas pelas empresas em que trabalhavam”, critica a especialista em gestão de pessoas e negócios Graziela Alves. Ela lembra que essa prática ainda contribui para a perpetuação da situação de vulnerabilidade vivida por muitas dessas mães e filhos, como aponta o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo a agência, cerca de 12 milhões de mães chefiam lares sozinhas. Do total, 57% vivem abaixo da linha da pobreza.