Economia
Com 33 milhões de pessoas passando fome, Brasil regride três décadas
Atrelada à inflação e ao desemprego, a fome avança no Brasil. Há ao menos 33 milhões de pessoas passando fome. É quase o dobro do estimado em 2020. São 14 milhões de novos brasileiros em situação de fome em pouco mais de um ano. O país regrediu quase 30 anos. Em 1993, havia 32 milhões sem ter o que comer diariamente, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). As informações são do jornal O Tempo.
Os dados mais recentes da fome foram divulgados nesta quarta-feira (8) pelo 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, feito pelo Instituto Vox Populi a pedido da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) – parceria das organizações Ação da Cidadania, ActionAid Brasil, Fundação Friedrich Ebert Brasil, Ibirapitanga, Oxfam Brasil e Sesc.
As estatísticas foram coletadas entre novembro de 2021 e abril de 2022, a partir de entrevistas em 12.745 domicílios, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios, nos 26 estados e no Distrito Federal. A Segurança Alimentar e a Insegurança Alimentar foram medidas, mais uma vez, pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), também usada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O 1º inquérito, divulgado em abril do ano passado, estimava em 19 milhões o total de brasileiros que não tinham nada para comer em 2020, cerca de 9 milhões a mais que em 2018, quando eram 10,3 milhões de pessoas nessa situação. A crise provocada pela pandemia do coronavírus está diretamente relacionada ao avanço, ainda maior, da fome nos últimos dois anos.
Mais da metade da população convive com a insegurança alimentar
A edição recente da pesquisa mostra que mais da metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau – leve, moderado ou grave (fome).
O país regrediu para um patamar equivalente ao da década de 1990. A pesquisa anterior, de 2020, mostrava que a fome no Brasil tinha voltado a patamares equivalentes aos de 2004.
“A continuidade do desmonte de políticas públicas, a piora no cenário econômico, o acirramento das desigualdades sociais e o segundo ano da pandemia da Covid-19 tornaram o quadro desta segunda pesquisa ainda mais perverso”, segundo a Rede Penssan.
“A pandemia surge neste contexto de aumento da pobreza e da miséria, e traz ainda mais desamparo e sofrimento. Os caminhos escolhidos para a política econômica e a gestão inconsequente da pandemia só poderiam levar ao aumento ainda mais escandaloso da desigualdade social e da fome no nosso país”, aponta Ana Maria Segall, médica epidemiologista e pesquisadora da Rede Penssan.
Confira outros destaques da pesquisa
Norte e Nordeste mais impactados novamente
A insegurança alimentar segue como uma questão que atinge as regiões do Brasil de forma desigual. No Norte e no Nordeste, os números chegam, respectivamente, a 71,6% e 68% – são índices expressivamente maiores do que a média nacional de 58,7%. A fome fez parte do dia a dia de 25,7% das famílias na região Norte e de 21% no Nordeste. A média nacional é de aproximadamente 15%, e, do Sul, de 10%.
O campo passa mais fome
O mesmo agravamento é percebido quando se compara o campo e a cidade. Nas áreas rurais, a insegurança alimentar (em todos os níveis) esteve presente em mais de 60% dos domicílios. Destes, 18,6% das famílias convivem com a insegurança alimentar grave (fome), valor maior do que a média nacional. E até quem produz alimento está pagando um preço alto: a fome atingiu 21,8% dos lares de agricultores familiares e pequenos produtores. A pobreza das populações rurais associada ao desmonte das políticas de apoio às populações do campo, da floresta e das águas, seguem impondo escassez.
A fome atinge mais as pessoas pretas e pardas
Neste segundo inquérito, fica evidente, mais uma vez, que a fome tem cor. Enquanto a segurança alimentar está presente em 53,2% dos domicílios onde a pessoa de referência se autodeclara branca, nos lares com responsáveis de raça/cor preta ou parda ela cai para 35%. Em outras palavras, 65% dos lares comandados por pessoas pretas ou pardas convivem com restrição de alimentos em qualquer nível. Comparando com o 1º Inquérito Nacional da Rede Penssan, de 2020, em 2021/2022, a fome saltou de 10,4% para 18,1% entre os lares comandados por pretos e pardos.
A fome atinge mais as as mulheres
As diferenças são expressivas na comparação entre os lares chefiados por homens e os lares chefiados por mulheres no período dos dois Inquéritos da Rede Penssan. Nas casas em que a mulher é a pessoa de referência, a fome passou de 11,2% para 19,3%. Nos lares que têm homens como responsáveis, a fome passou de 7,0% para 11,9%. Isso ocorre, entre outros fatores, pela desigualdade salarial entre os gêneros.
Fome dobrada nos lares com crianças
Em pouco mais de um ano, a fome dobrou nas famílias com crianças menores de 10 anos – de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022. Na presença de três ou mais pessoas com até 18 anos de idade no grupo familiar, a fome atingiu 25,7% dos lares. Já nos domicílios apenas com moradores adultos a segurança alimentar chegou a 47,4%, número maior do que a média nacional.
Para a fome sumir, é preciso ter renda
A fome quase desaparece nos lares com renda superior a um salário mínimo por pessoa. Em 67% dos domicílios com renda maior que um salário mínimo por pessoa, o acesso a alimentos (segurança alimentar) é pleno e garantido. Porém, se em 2020 não havia domicílios com renda maior que um salário mínimo por pessoa em situação de fome, no início de 2022 essa deixou de ser uma garantia contra a privação do consumo de alimentos – consequência da crise econômica e dos reajustes do salário mínimo abaixo da inflação. Agora, 3% dos lares nesta faixa de renda tem seus moradores em situação de fome, e 6% convivem com algum grau de restrição quantitativa de alimentos (insegurança alimentar moderada) e 24% não conseguem manter a qualidade adequada de sua alimentação (insegurança alimentar leve).
Sem documento e sem comida na mesa
A fome é maior nos domicílios em que a pessoa responsável está desempregada (36,1%), trabalha na agricultura familiar (22,4%) ou tem emprego informal (21,1%). Já a segurança alimentar é maior nos lares onde o chefe da família trabalha com carteira assinada, chegando a 53,8% dos domicílios.
A fome atinge quem não consegue chegar às escolas
Há fome em 22,3% dos domicílios com responsáveis com baixa escolaridade — 4 anos ou menos de estudo. Em 2020 esse percentual era de 14,9%. O maior percentual de segurança alimentar é em domicílios cujos responsáveis têm mais de 8 anos de estudo: 50,6%.
Falta água para beber e para cozinhar
A falta de acesso regular e permanente à água — também conhecida como insegurança hídrica — é uma realidade para 12% da população geral brasileira. A insegurança alimentar moderada esteve presente em 22,8% desses lares, e a fome, em 42,0%. A insegurança alimentar se manifesta em 48,3% dos lares com restrição de acesso à água na região Norte, em 43,0% no Sudeste, em 41,8% do Centro-Oeste e em 41,2% no Nordeste. Onde falta água, também falta alimento.
A vergonha de sentir fome
De todas as famílias entrevistadas pela pesquisa, 8,2% relataram sensação de vergonha, tristeza ou constrangimento pelo uso de meios que ferem a dignidade para conseguir colocar comida na mesa. Isso corresponde a 15,9 milhões de pessoas no Brasil, que foram obrigadas a usar de meios social e humanamente inaceitáveis, para obtenção de alimentos. Nessa faixa, 24,3% convivem com as manifestações mais severas de insegurança alimentar (moderada ou grave).
A fome para quem tem dívidas, ou precisa vender bens de trabalho e parar de estudar
Dos entrevistados que informaram endividamento, 49,1% passaram por insegurança alimentar moderada e grave. Já dos que relataram venda de bens ou equipamentos de trabalho, 48,7% também estavam nessa mesma situação. E entre os que contaram que precisaram parar de estudar para contribuir com a renda familiar, são 55,2% nesses recortes mais graves de insegurança alimentar.
O alimento sai da despensa, a fome entra pela porta
Cerca de metade das famílias que deixaram de comprar, nos últimos 3 meses, arroz, feijão, vegetais e frutas convivem com a insegurança alimentar moderada ou grave. Entre as famílias que deixaram de comprar carnes nos três meses anteriores à pesquisa, 70,4% passavam fome. Dados semelhantes foram encontrados nos lares onde os moradores não haviam comprado frutas (64%) e vegetais (63,6%).
Foto: Arquivo/Agência Brasil