Feminicídio
Ciclo de violência

Uma mulher foi morta pelo marido, namorado, companheiro ou ex a cada dois dias em Minas Gerais no último ano. Foram 161 feminicídios registrados em 2024 e outras 248 tentativas, segundo dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp).
Um levantamento do Estado de Minas, com base em reportagens publicadas sobre feminicídios ocorridos somente neste mês de março, reforça a gravidade desses números.
Nos primeiros 12 dias do mês, pelo menos seis mulheres foram brutalmente assassinadas — e isso considerando apenas os casos que ganharam cobertura da imprensa. O mais recente foi o da biomédica Miquéias Nunes de Oliveira, de 33 anos, morta pelo ex-marido em Ibirité, na Grande BH.
No momento do crime, Miqueias atendia uma paciente na clínica de estética onde trabalhava. O homem, identificado como Renê Teixeira, de 42, entrou no local sob o pretexto de uma conversa e, diante de testemunhas, desferiu pelo menos dez golpes de canivete contra a vítima, de acordo com a Polícia Militar. Em seguida, tentou tirar a própria vida, mas sobreviveu. Ele confessou o crime anteontem (11/3), quando foi preso, e autuado por feminicídio e também por posse ilegal de arma de fogo, já que um revólver foi encontrado em sua casa.
O crime escancarou a realidade de muitas mulheres que tentam se afastar de relações abusivas, mas encontram a resistência de parceiros que não aceitam o fim. Os dois se casaram em 2021 e ele não aceitava o fim do relacionamento.
O quadro geral indica que os números de violência contra a mulher em Minas Gerais continua em níveis tão alarmantes quanto os crimes contra a vida. Somente em janeiro deste ano, mais de 13 mil mulheres registraram ocorrências de agressões no estado – uma média de 400 vítimas por dia, conforme dados da Sejusp. Esse número se mantém estável nos últimos três anos, evidenciando que, apesar das leis e campanhas de conscientização, o problema continua sem retrocesso significativo. Em 2024, foram 153.599 registros de violência doméstica, número próximo ao de 2023, com 156.090 casos. Em 2022, foram 141.582 ocorrências.
O Dia Internacional da Mulher, que deveria ser marcado por celebrações e reflexões sobre conquistas, trouxe novos episódios de violência. Em Montes Claros, no Norte de Minas, uma jovem de 23 anos passou as primeiras horas da madrugada de 8 de março sendo brutalmente agredida pelo companheiro.
Grávida de seis meses, ela foi salva por uma denúncia anônima, feita por vizinhos que não suportaram ouvir seus gritos de desespero. Aos policiais, relatou viver aterrorizada, com medo da própria morte e da segurança dos filhos. Em meio às agressões, o homem havia dito que “racharia a cabeça dela no meio com um machado”.
Já na Grande Belo Horizonte, a oficial de Justiça Maria Sueli Sobrinho, de 48 anos, foi agredida com uma cabeçada e um soco no rosto por um sargento da Polícia Militar enquanto trabalhava em Ibirité. Com o rosto ensanguentado, ela precisou ser hospitalizada. Os dois casos que expõem a banalização da violência contra mulheres, um fenômeno que, segundo especialistas, está longe de ser apenas estatístico.
Dez anos da Lei do Feminicídio
Sancionada em 2015, a Lei do Feminicídio transformou o assassinato de mulheres em um crime qualificado, sujeito a penas mais severas. Em 2024, o governo federal endureceu ainda mais a legislação, aumentando a pena mínima de 12 para 20 anos e a máxima para 40. Para a advogada criminalista Chayana Rezende, a lei, que completou dez anos de vigência neste mês, trouxe avanços significativos ao reconhecer o caráter de violência de gênero nesses assassinatos, mas o país ainda falha na prevenção.
“O endurecimento das penas pode ser um fator de dissuasão para alguns agressores, mas não resolve o problema estrutural da violência contra a mulher. A criminalidade não se combate apenas com punição; a prevenção é o que realmente reduz os índices de violência”, diz.
E a subnotificação ainda mascara a real dimensão da violência contra a mulher. Muitas vítimas não denunciam seus agressores por medo, dependência financeira ou desconfiança no sistema de proteção. Para combater esse silêncio, a advogada defende medidas como o fortalecimento das delegacias especializadas –muitas das quais não funcionam 24 horas–, a ampliação de canais sigilosos de denúncia e a criação de assistência financeira emergencial para vítimas.
“O feminicídio é muito mais que um problema jurídico, é uma questão sociocultural. A Lei do Feminicídio foi um marco importante, mas não é suficiente. Precisamos agir em várias frentes para que, daqui a dez anos, possamos olhar para trás e ver que realmente avançamos no combate à violência contra as mulheres e podermos comemorar”, frisa.
Até outubro do ano passado, os tribunais brasileiros haviam julgado mais de 571 mil processos de violência doméstica e 6.328 feminicídios distribuídos até 2022. No mesmo período, 8,3 mil novos processos de feminicídio chegaram à Justiça. A quantidade crescente de ações demonstra que a violência extrema contra mulheres não cessa, mesmo com penas mais rigorosas.
“Quando uma mulher morre a culpa é de toda a sociedade. Eu quero dizer isso assim com um peito cheio. Eu reconheço que a gente tem que se aprimorar”, afirmou a promotora de Justiça Patrícia Habkouk, chefe da divisão de apoio ao enfrentamento da violência contra a mulher do Ministério Público de Minas Gerais, em entrevista exclusiva ao programa EM Minas no ano passado.
Denúncia é insuficiente
A invisibilidade dos crimes de feminicídio, segundo a avaliação da promotora de Justiça, é fruto de uma cultura que por muito tempo normalizou a violência contra as mulheres. Patrícia sublinha no programa que, somente em 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a tese da legítima defesa da honra, frequentemente utilizada para justificar o assassinato de mulheres, como inconstitucional. “A gente agora tem leis que impedem o questionamento, o desrespeito e a revitimização das mulheres durante as audiências. Anteriormente, em casos de estupro, questionava-se até a roupa que a mulher usava e o local onde estava”, aponta.
A promotora de Justiça ressaltou ainda que muitas vítimas nunca haviam requerido medidas protetivas antes do assassinato. “Mais de 80% das mulheres que morrem nunca tinham requerido uma medida protetiva. Outro ponto é que a gente tem uma cultura de denunciar a violência doméstica, seja na polícia ou no Ministério Público. Mas não é só denunciar, a mulher tem o direito de requerer outras providências se aquela medida não surtiu efeito”, disse, ressaltando medidas que vão desde a advertência a monitoração eletrônica e até mesmo a prisão do acusado.
Homem mata a ex-companheira e tenta cometer suicídio na Grande BH
À reportagem, ela relembrou que, por seis anos, a aplicação da Lei Maria da Penha, que estabelece medidas de proteção para mulheres em situação de violência doméstica, foi questionada por alguns juízes, que a consideravam “diabólica” e contrária à proteção da família. E hoje mesmo quando solicitadas, ela reconhece que precisam ser acompanhadas de outras ações eficazes.
“A medida protetiva proíbe a aproximação, mas a aproximação não precisa ser física, não é? Qualquer tipo de contato, uma mensagem ameaçadora pelo celular, por exemplo, já é uma violação. E se um agressor continua descumprindo, é fundamental que essa mulher saiba que pode e deve buscar reforço na Justiça”, aponta.
É consenso que o combate ao feminicídio e à violência doméstica exige uma resposta integrada, que envolva, além do endurecimento das penas, um esforço contínuo para desconstruir a cultura patriarcal que sustenta essa violência. A advogada Chayana Rezende destaca que avanços na legislação ajudam a combater a impunidade, mas não são suficientes se outros pilares do sistema não funcionarem. “São avanços consideráveis e que amenizam o clamor da população quanto à impunidade, mas se o judiciário continuar lento, se a polícia não for bem treinada e se a rede de proteção às vítimas não for fortalecida, esses números não mudarão significativamente”, reforça.
“O que a lei pode garantir é apenas que aqueles que cometem feminicídio sofram consequências mais severas, mas, para que haja uma proteção verdadeira para as mulheres, é preciso um sistema de prevenção robusto, com apoio às vítimas antes que o crime aconteça”, completa.
Para Rezende, a conscientização precisa começar cedo, dentro das escolas, combatendo o machismo estrutural e as narrativas que normalizam a violência contra mulheres. “Enquanto mulheres continuarem sendo tratadas como cidadãs de segunda classe, enquanto houver desigualdade salarial, enquanto a violência doméstica for minimizada, os feminicídios continuarão acontecendo”, reforça a advogada.
Fonte: https://www.em.com.br/gerais/2025/03/7082863-ciclo-de-violencia.html