Casados há dez anos, o ator Rodrigo Calil, 43, e o médico Luiz Augusto de Oliveira Machado, 39, esperaram 13 mil horas para ter em seus braços o maior amor de suas vidas. Desde o momento em que concluíram os trâmites de adoção até a chegada da filha Elizabeth, 6, foram 546 dias, ou três anos e seis meses, de persistência. Neste domingo, seis anos depois, os dois comemoram mais um Dia dos Pais em família. Um sonho ainda longe de se tornar realidade para outros casais homoafetivos que esbarram em falta de direitos básicos para ampliar as famílias. As informações são do jornal O Tempo.
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que em 5 de maio de 2011 reconheceu o direito ao estabelecimento da união estável por casais homoafetivos representou um marco no processo de adoção por casais LGBTQIA+. Isso porque a decisão do STF garantiu, por meio da ADI 4.277, a união estável entre pessoas do mesmo gênero como entidade familiar, com os mesmos direitos e deveres dos casais heterossexuais. Na ocasião, também foi julgada a ADPF 132, que argumentava que o não reconhecimento feria os preceitos fundamentais da igualdade e da liberdade e o princípio da dignidade da pessoa humana, todos previstos na Constituição Federal. Porém, mais de uma década depois dessa decisão, pouco se avançou em termos de garantia de outros direitos para tornar o sonho da paternidade e da maternidade possível para todos os casais.
Para o vice-presidente da Comissão Estadual da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MG), Alexandre Bahia, alguns dos grandes desafios são a licença-maternidade e a licença-paternidade. “É um desafio imenso porque tem alguns anos que se reconhece que pessoas que adotam devem ter igual tratamento”, disse em relação aos casais com filhos biológicos.
A Constituição de 1988 estabelece como direito social, em seu artigo 7º, o direito à licença-maternidade e à licença-paternidade sem prejuízo do emprego e do salário. A decisão estabelecia, inicialmente, o direito de 120 dias de licença-maternidade para mães biológicas. Em 2009, esse mesmo prazo foi concedido às mães adotivas. Já em 2013, foi sancionada uma lei que garante ao pai adotivo o mesmo período de 120 dias de licença. No entanto, conforme a determinação, caso a adoção seja feita com outra pessoa, seja homem ou mulher, somente um dos dois tem direito ao tempo previsto em lei.
Segundo Bahia, a garantia dessa licença ocorre pensando no melhor interesse da criança adotada, principalmente no vínculo afetivo e na necessidade da convivência. Para ele, no caso de um homem solteiro ou de um homem que vive uma união estável ou um casamento, o razoável é que fosse assegurado a ele os mesmos direitos da licença-maternidade, já que ela tem um prazo maior, de quatro meses, podendo, eventualmente, chegar a seis. “A gente deveria pensar na possibilidade de tirar o gênero da atribuição dessa licença e pensar na parentalidade, para que ela pudesse ser concedida indiferentemente do gênero, o que iria favorecer a criança e seus pais”, sugere.
O estigma também serve como uma barreira invisível, mas diária, para os casais homoafetivos que optam por ampliar a família. Segundo Calil, ele e o companheiro não sofrem preconceitos por se tratar de um casal homoafetivo, mas pela escolha de adotar. Por diversas vezes tiveram que ouvir comentários, alguns sem intenção, de que estariam fazendo um ato de caridade, por exemplo. Falas que o incomodaram.
“Eu não estou fazendo caridade, estou sendo pai. Eu sou pai pela adoção”, disse. Para ele, apesar de todas as adversidades, valeu a pena a espera e cada desafio imposto pelo processo. “A guarda definitiva da nossa filha veio no dia em que ela saiu da escola trazendo uma cartinha com o desenho da nossa família embaixo de um arco-íris. A nossa vida é outra depois que nossa filha chegou, não tem parâmetro”, relembrou o ator emocionado.
Para ele, o maior desafio foi a burocracia enfrentada no processo de adoção. “De uma ansiedade silenciosa, de muita espera, sem saber se ela ia chegar. Ninguém podia garantir nada para a gente. Você não sabe se você deixa o quartinho vazio, se coloca um berço ou uma cama. Se faz um plano para o ano que vem. Você não sabe se ela vai chegar”, relata Calil. Eles deram início ao processo de adoção em 2013. A inscrição no antigo Cadastro Nacional de Adoção (CNA), hoje Sistema Nacional de Adoção (SNA), foi feita em uma decisão conjunta, após a união estável do ator e do médico.
“Eu sempre soube que eu ia ser pai. Eu sempre tive muito claro em mim o desejo de paternidade”, conta Calil. O processo, da habilitação até a guarda ser deferida, durou cerca de três anos e seis meses. “A espera longa trouxe para a gente uma certeza de que a gente queria mais. A dificuldade mostrou que a gente queria formar ainda mais a nossa família”, relembra o médico Luiz Augusto.
Longa espera pela adoção
De acordo com o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), órgão responsável pela condução dos processos de adoção no Estado, 4.004 pessoas se encontram na fila à espera do filho ou da filha. Ao todo, 321 crianças e adolescentes estão aptas à adoção. O número pode ser maior, uma vez que a indefinição jurídica, como a destituição do poder familiar, inviabiliza a disponibilidade da criança e do adolescente para adoção.
“Muitas vezes nós vemos operadores do direito excedendo na interpretação das leis, buscando a qualquer custo manter as crianças em sua família de origem e não conseguindo resguardar os melhores interesses para as crianças e os adolescentes envolvidos”, aponta o juiz da Vara da Infância e da Juventude de Uberlândia, José Roberto Poiani, como dos desafios para agilizar o processo no país.
Neste ano, 206 crianças foram adotadas em Minas Gerais pelo Sistema Nacional de Adoção. O número registrado em oito meses é próximo aos 266 processos concluídos no ano passado. Também em 2022, outras 148 crianças e adolescentes foram adotadas no Estado pelo intuito personae, que ocorre quando a mãe biológica manifesta o interesse em entregar a criança a pessoa conhecida, sem que essa conste no Sistema Nacional de Adoção.
O TJMG não consegue especificar quantas dessas adoções foram feitas por casais homoafetivos. Isso porque, segundo o órgão, a condução do processo é igual entre casais héteros e homoafetivos. “A única coisa que precisam demonstrar é que eles vivem como entidade familiar e que há estabilidade com esse casal. A adoção é deferida quando representa reais vantagens e motivos legítimos para o adotante”, explica Poiani.
Para o juiz da Vara da Infância e da Juventude, apesar de não conseguir quantificar as adoções por casais homoafetivos, é perceptível o aumento no número de casais habilitados. “Na medida em que os preconceitos foram superados e que a jurisprudência foi garantindo mais direitos e reconhecendo essa união como uma entidade familiar, a procura e a preparação foram se tornando maiores”, relata José Roberto Poiani. O juiz também aponta um equilíbrio na procura por casais formados por mulheres e por homens.
A experiência no processo de adoção aproximou o ator Rodrigo Calil e o médico Luiz Augusto de outros casais que também decidiram adotar. Durante a vivência do processo, marcada por angústia e ansiedade, acompanharam de perto o desafio de outras pessoas, algumas que levaram ainda mais tempo para conseguir adotar seus filhos. “Algumas estavam havia cinco anos esperando por seus filhos. As contas não batem”, relata Calil. Ele aponta que um dos motivos que podem ter encurtado o prazo para a chegada de Elizabeth foi o casal ter optado por um perfil amplo, sem muitas restrições, como a de etnias. “Eu nunca fui vaidoso ao ponto de me ver fisicamente na minha filha. Essa não é a conexão que importa pra mim”, conta.
Os avanços jurídicos no processo de adoção para casais homoafetivos
Há 11 anos, quando o STF reconheceu o direito ao estabelecimento da união estável por casais homoafetivos, uma importante barreira para a adoção foi derrubada. Para o vice-presidente da Comissão Estadual da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MG), Alexandre Bahia, a decisão do STF colocou fim a uma série de problemas relacionados à adoção por pessoas homoafetivas e assegurou esse direito, que não deveria ter impedimentos, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente.
“Antes da decisão, era comum que pessoas LGBTQIA+ optassem pela adoção unilateral, isso porque a legislação nunca determinou que a pessoa tivesse que ser casada ou viver uma união estável para adotar”, aponta. No entanto, de acordo com o vice-presidente, isso comprometia uma série de direitos da criança, uma vez que essa seria filha apenas de um dos membros do casal. “Problemas não só com a documentação, como também com planos de saúde, herança, além de significar uma grande discriminação”, explica.
A decisão, histórica, deu uniformidade ao entendimento da lei e assegurou o direito constitucional à igualdade e à não discriminação, reconhecendo o direito básico dos casais do mesmo gênero poderem constituir uma família. A partir disso, os casais LGBTQIA+ que temiam uma adoção conjunta com medo de ter o direito negado, devido ao não reconhecimento da união estável, conseguiram optar pela habilitação em conjunto. “Essas decisões contribuíram para essa temática de adoção; a partir disso, tudo mudou. Favoreceu”, avalia o juiz da Vara da Infância e da Juventude de Uberlândia, José Roberto Poiani.
Como a legislação brasileira prevê que a conversão de união estável em casamento deve ser facilitada, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou, em outubro de 2011, que o mesmo princípio se aplicava ao casamento. Diante disso e da dificuldade de alguns casais em terem seus pedidos de conversão de união estável para registro civil, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitiu uma resolução para proibir que cartórios vetassem o casamento ou a conversão de união estável em casamento de pessoas homoafetivas. Para o Alexandre Bahia, essa determinação foi outro marco na adoção de casais homoafetivos. “Com esse outro reconhecimento, a gente tem a união estável e o casamento. Então, teoricamente, não pode haver diferenças”, conclui.
Dos tribunais ao lar
O parágrafo único do artigo 25 do Estatuto da Criança e do Adolescente aponta que “entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade”. Para o juiz da Vara da Infância e da Juventude de Uberlândia, José Roberto Poiani, as palavras afinidade e afetividade, descritas no texto, devem ser consideradas durante o processo de adoção. “Faltam as pessoas se conscientizarem que a família não se forma apenas pelo sangue”, disse.
A família do delegado da Polícia Civil de Minas Gerais Pedro Henrique Cunha, do promotor de Justiça Ary Bittencourt e de Luísa Cunha Bittencourt, de apenas 2 anos, se constituiu por meio do processo de adoção. “Foi a melhor decisão da minha vida. Eu não me vejo sem a minha filha e não me vejo não sendo pai. Eu sou absolutamente realizado”, afirma o delegado Pedro Henrique Cunha, de 37 anos.
Foi ele quem deu início ao processo de adoção, quando morava na cidade de Unaí, na região Noroeste de Minas Gerais. O delegado ainda era solteiro quando decidiu entrar no cadastro de adoção. “Simplesmente entrei no site e fiz. Em menos de um mês tive uma audiência com um juiz e foi feito um laudo com um estudo psicossocial que tentaram entender por que eu queria entrar no processo de adoção”, conta. Durante o processo, ele conheceu Ary Bittencourt, com quem começou a se relacionar e para quem contou sobre o desejo de ser pai. “O Ary sabia disso e também tinha o mesmo desejo”, disse.
Após a primeira etapa, com apresentação dos documentos, avaliação dos candidatos, realização dos cursos e habilitação para a adoção, Cunha foi apresentado a Luíza. A criança tinha duas semanas de nascida e havia sido levada para um abrigo. O delegado pôde, então, conhecer a história da recém-nascida e participou de uma entrevista com uma psicóloga e uma assistente social.
“O Ary não estava no cadastro. Quando ela nasceu, solicitamos a extensão da guarda para ele e entramos com o processo conjunto”, contou o delegado. O processo, que não tinha impedimentos jurídicos, foi rapidamente solucionado. Como a criança tinha apenas duas semanas de vida, o estágio de convivência foi dispensado pelo juiz. “A partir daí foi uma ansiedade que eu nunca vivi na vida”, relembra Cunha.
Segundo o juiz da Vara da Infância e da Juventude de Uberlândia, José Roberto Poiani, todas essas etapas, embora possam parecer longas, são necessárias para a assertividade na condução do processo. “Hoje nós temos uma legislação moderna, mas que permite que a adoção seja concretizada”, justifica. Para Poiani, os procedimentos têm como único objetivo resguardar os interesses das crianças e dos adolescentes, de modo a evitar que essa seja submetida a uma nova situação de “rejeição”.
As etapas do processo de adoção
O processo de adoção é gratuito e tem início na Vara de Infância e Juventude. Podem participar maiores de 18 anos, independentemente do estado civil, desde que seja respeitada a diferença de 16 anos entre quem deseja adotar e a criança a ser escolhida.
Cadastro no Fórum ou Vara da Infância e da Juventude da cidade
Análise de documentos
Avaliação da equipe interprofissional
Participação em programa de preparação para adoção
Análise do requerimento pela autoridade judiciária e pedido de habilitação à adoção
Ingresso no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento
Busca-se uma família para a criança/adolescente, com possibilidade de visitas aos abrigos e pequenos passeios para aproximação.
Estágio de convivência por 90 dias, com possibilidade de prorrogação por período igual.
Sentença de adoção e confecção do novo registro de nascimento