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Bolsonaro: governo fichou líderes caminhoneiros segundo o grau de ‘ameaça’

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Documento da Abin de 2020 tem nomes, fotografias e análise de 'ameaça' de caminhoneiros (foto: Tomaz Silva/Agência Brasil )

Documento da Abin de 2020 revelam nomes, fotografias e análise da ‘vinculação a grupos políticos de oposição’ ao governo

Na manhã de 7 de julho de 2021, o então diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem, participou de uma audiência pública na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CREDN) da Câmara dos Deputados.

Na época havia denúncias de supostas atividades ilegais do governo de Jair Bolsonaro, como um alegado uso político da agência em favor do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e a confecção de “dossiês” sobre professores e policiais do movimento antifascista realizado por outra área do governo, o Ministério da Justiça, suspensa pelo STF em 2020 e declarada ilegal em 2022.

“Nós não fazemos monitoramento de pessoas”, disse o então responsável pela Abin, atual deputado federal pelo PL do Rio de Janeiro. Em resposta a uma pergunta da então integrante da CREDN, hoje ex-deputada, Perpétua Almeida, ele reiterou: “Não fazemos análises de indivíduos”.

Mas um documento agora obtido com exclusividade pela Agência Pública por meio da Lei de Acesso à Informação – após dois anos e meio de negativas do governo de Jair Bolsonaro (PL) – contradiz as afirmações do ex-diretor da Abin ao Congresso Nacional.

Sob a direção de Ramagem, em 16 de abril de 2020 a Abin produziu um documento de três páginas intitulado “Painel de Monitoramento dos Transportadores Autônomos de Cargas”. O relatório é um fichamento de oito lideranças caminhoneiras no país, com fotos, nomes e apelidos, além dos seus estados de atuação e os níveis de “ameaça” que cada um deles representaria ao governo.

Ao lado das fotos dos caminhoneiros há qualificações separadas entre “alta”, “média” e “baixa” sobre atividades das lideranças. A avaliação inclui supostos níveis de “ameaça” que elas representariam, comparando-os a um semáforo de trânsito – sendo verde, o nível mínimo, amarelo, o intermediário, e vermelho o grau máximo de alerta.

Não há informação, porém, sobre qual “ferramenta analítica” teria sido usada pela Abin para avaliar os níveis de “ameaça” dos caminhoneiros, nem detalhes sobre as “fórmulas de cálculos” para chegar a estes níveis. Conforme revelado pela Pública, a gestão de Ramagem ficou marcada pelo aumento de compras de ferramentas ‘espiãs’ sem licitação, transparência ou qualquer tipo de controle cidadão.

Para determinar o grau de “ameaça” dos caminhoneiros, a Abin levou em conta “acesso a canais formais de comunicação, proliferação de mensagens do ator [caminhoneiro] em redes sociais; presença em pontos de bloqueio anteriores; agressividade do discurso; vinculação a grupos políticos de oposição, capacidade e intenção de mobilização”.

O documento apresenta as “reivindicações” de cada líder fichado, como “liberação dos pedágios”, “aumento do auxílio [emergencial] de 600 reais”, “piso mínimo de frete” e concordância – ou discordância – “com o pacote de medidas econômicas e preventivas para a Covid-19” implementadas pelo governo de Bolsonaro.

Abin admite que pode incluir pessoas em análise de “ameaças”

Procurada pela Pública para que comentasse o documento, a Abin informou nesta quinta-feira (25), por e-mail, que “não monitora indivíduos indiscriminadamente, mas cenários nacionais ou internacionais. Ao acompanhar uma ameaça, há a possibilidade de pessoas eventualmente ligadas aos eventos passarem a compor o cenário analisado”. Leia, ao final do texto, a íntegra da manifestação.

A fala da Abin se choca com a negativa feita taxativamente por Ramagem ao Congresso Nacional em 2021, quando afirmou que a agência não monitorava pessoas nem analisava indivíduos.

As vítimas do ‘fichamento’

A lista dos caminhoneiros fichados pela Abin inclui dirigentes de entidades representativas em âmbito nacional, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes e Logística (CNTTL) e a Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos (CNTA), e também lideranças autônomas, desvinculadas de associações do setor. Três dos caminhoneiros localizados pela Pública nesta quarta-feira (24) manifestaram indignação ao saber do documento (leia aqui).

O nome mais conhecido na lista é o do atual presidente da Associação Brasileira de Condutores de Veículos Automotores (Abrava), Wallace Landim, o Chorão, que ganhou notoriedade com a greve geral dos caminhoneiros em 2018 durante o governo de Michel Temer.

Outro nome de destaque é o do líder autônomo Ubirajara Nobre Carlos, o Bira Nobre. Ele disputou as eleições de 2022 pelo PL do ex-presidente Bolsonaro, concorrendo, sem sucesso, a uma vaga para deputado estadual pelo Espírito Santo.

Após o pleito, a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) e o Ministério Público Estadual do Espírito Santo suspeitaram que Bira Nobre fosse um dos líderes de protestos golpistas no estado – conforme noticiado pela emissora SBT e pelo jornal A Gazeta.

Os outros caminhoneiros fichados pela Abin são: Ariovaldo de Almeida Júnior, o Calopsita ou Júnior, de São Paulo, presidente do Sindicato dos Caminhoneiros de Ourinhos (SP); Carlos Alberto Dahmer, o Litti, do Rio Grande do Sul, atual diretor da CNTTL e ligado ao Sindicato dos Transportadores Autônomos de Carga de Ijuí (RS); Diumar Deleo de Cunha Bueno, do Paraná, então presidente da CNTA; Marconi França, o Cowboy, de Pernambuco, líder autônomo da categoria no estado; Salvador Edmilson Carneiro, o Dodô, da Bahia, liderança autônoma dos caminhoneiros no estado; e Fabiano Márcio da Silva, o Careca, de Minas Gerais, também líder autônomo do setor no estado.

No fichamento da Abin, Bueno, Landim e Nobre foram tratados como uma ameaça de nível “verde”, ou seja, baixa. Os outros tiveram uma ameaça considerada “amarela”, isto é, média.

“Desvio de finalidade e afronta aos direitos fundamentais”

No mesmo ano da confecção do fichamento dos caminhoneiros, em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu em plenário que o governo Bolsonaro não deveria usar órgãos de inteligência para monitorar ou produzir “dossiês” sobre pessoas.

A decisão ocorreu no caso do dossiê contra professores e policiais antifascistas feito pela Secretaria de Operações Integradas (Seopi), do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), no começo da gestão de André Mendonça – que, depois disso, tornou-se um dos onze ministros do STF. Na gestão anterior, do atual senador Sérgio Moro (Podemos-PR), a Seopi foi turbinada e ganhou status de secretaria.

Em setembro de 2020, por nove votos a um, os ministros do STF proibiram a confecção de tais dossiês sobre pessoas e, em maio de 2022, declararam a prática do governo Bolsonaro como “ilegal”.

A relatora do caso, ministra Carmen Lúcia, disse em seu voto que “o uso da máquina estatal” para coleta de informações sobre pessoas – no caso em julgamento, servidores públicos contrários ao governo Bolsonaro – “caracteriza desvio de finalidade e afronta aos direitos fundamentais de livre manifestação do pensamento, de privacidade, reunião e associação”.

As críticas foram repetidas por outros ministros da Corte. O ministro Luiz Edson Fachin disse que a atividade de inteligência não deve investir contra as liberdades individuais e lembrou do período da ditadura militar (1964-1985). “O direito à livre manifestação e o direito ao protesto”, afirma o ministro, “não é – diremos à exaustão – infração penal e não está, portanto, sujeito, seja à investigação penal, seja à atividade de inteligência”.

“Como bem mostrou o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, o modelo adotado, ao longo do Regime Militar pelo Serviço Nacional de Informações (SNI)”, diz ainda Fachin, “não pode, sob nenhuma hipótese, ser o mesmo do atual sistema de inteligência”.

Em seu voto, contrário à fabricação dos dossiês, o ministro Alexandre de Moraes estendeu sua análise para além do setor de inteligência do MJSP, a Seopi. “Qualquer sistema de inteligência, não é possível que qualquer órgão público possa atuar fora dos limites da legalidade e possa, fora desses limites, começar a produzir e compartilhar informações de vida pessoal, escolhas pessoais, políticas, sai da análise dos fatos – obviamente a legislação autoriza dentro dos fatos – […] mas não bisbilhotar e supor que essas pessoas, principalmente servidores públicos da área de segurança, são a favor ou contra o governo, são a favor ou contra essa ideologia. Isso é grave, certo?”

Já para o ministro Gilmar Mendes, atual decano da Corte, os dossiês “teriam sido produzidos não em virtude do risco” ou para “evitar a ocorrência de eventuais atos criminosos ou terroristas, mas sim em virtude do exercício da liberdade de expressão e de crítica das pessoas monitoradas, o que é incompatível com o regime de proteção às liberdades constitucionalmente estabelecido”.

Ramagem: documento contradiz as afirmações do ex-diretor da Abin ao Congresso Nacional (foto: Carolina Antunes/PR)

O papel da Abin no combate à Covid-19 do governo Bolsonaro

O fichamento dos caminhoneiros integra um conjunto de documentos produzidos pela Abin na época do combate à Covid-19, que na Presidência da República de Jair Bolsonaro ficou sob a coordenação do Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19 (CCOP) da Casa Civil. A memória das reuniões da CCOP foi revelada com exclusividade pela Pública na série de reportagens As Atas Secretas da Covid-19.

Tanto as atas secretas da CCOP quanto os documentos agora revelados não foram acessados nem analisados pela CPI da Pandemia, que funcionou no Senado Federal em 2021. Após a publicação da série de reportagens, a cúpula da comissão aventou a possibilidade de pedir a reabertura de inquéritos arquivados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) com base na revelação das atas secretas.

Na maior parte do tempo, os trabalhos do CCOP foram coordenados pelo tenente-coronel reformado do Exército Heitor Freire de Abreu, então subchefe de Articulação e Monitoramento da Casa Civil – um subordinado direto do general Braga Netto.

Conforme apurado pela Pública, parte dos materiais produzidos pela Abin era entregue pessoalmente à assessoria do então ministro da Casa Civil, em papel e com a informação sobre qual setor da agência era responsável pela confecção dos documentos. Os materiais da Abin não eram levados para as reuniões do comitê.

A reportagem teve acesso a outros relatórios da Abin sobre a atuação dos caminhoneiros. Um deles, datado de 13 de abril de 2020 – ou seja, três dias antes do fichamento das lideranças do setor – é denominado “Briefing Covid-19 – Transportadores de Carga”.

Com doze páginas, o relatório enumera as “principais reivindicações” da categoria à época, detalha o “medo do contágio” pelos transportadores e os impactos do “fechamento dos pontos locais de apoio”, além dos “impactos econômicos na demanda do frete” – que na época estava em declínio conforme aumentava o número de casos de caminhoneiros contaminados pela Covid-19.

No mesmo documento, a Abin faz uma avaliação detalhada sobre as “medidas governamentais” para o setor de transporte, tendo em vista riscos de desabastecimento e também eventuais manifestações contrárias ao governo Bolsonaro.

O material apresenta avaliações das medidas tomadas pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), pelo Ministério da Infraestrutura e pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) – esta última estaria contribuindo, segundo a Abin no documento, para o “arrefecimento do ímpeto de paralisação dos transportadores”.

Quanto à pasta de Infraestrutura, então comandada pelo militar da reserva Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP), a Abin avaliou que a plataforma Fala, Caminhoneiro!, que permitia ao governo “conhecer as reivindicações dos motoristas sem intermediários”, tinha “potencial para mitigar a atomização de lideranças dos transportadores autônomos no futuro”. Isto é, para a Abin, a ferramenta poderia evitar o surgimento de novos líderes caminhoneiros no transcorrer da pandemia.

Com base “na avaliação dos caminhoneiros”, a Abin relatava que a ANTT “não tomou novas iniciativas concretas para aliviar os efeitos econômicos imediatos da pandemia, principalmente sobre os transportadores autônomos”. “Novos dados obtidos revelam que as medidas já adotadas parecem não arrefecer o ímpeto mobilizatório dos autônomos pela retomada plena das atividades econômicas”, segundo o relatório obtido pela Pública.

Medidas do governo não eram suficientes para caminhoneiros, diz outro relatório

Em um terceiro documento que cita caminhoneiros, de cinco páginas, a Abin analisou as “condições de abastecimento nos Estados brasileiros”. Datado de 8 de abril, ou seja, oito dias antes do fichamento dos líderes caminhoneiros, a agência faz uma crítica velada sobre o comportamento do governo federal no atendimento à categoria.

“Foi notado também que faltam orientações consistentes sobre a prevenção do Covid-19 voltadas aos transportadores de carga. Algumas iniciativas de distribuição de itens de proteção básica contra o vírus foram feitas pelo Serviço Social do Transporte e pelo Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte, pelo Ministério de Infraestrutura, pela PRF e por entidades representativas, mas elas não são suficientes para atender toda a categoria”, diz o material obtido pela Pública.

No mesmo documento a agência também alerta sobre a situação de vulnerabilidade dos caminhoneiros e lembra que não havia cura para a doença até aquela data. À época de produção do material também não havia prazo para a fabricação de uma vacina contra o vírus da Covid-19.

“A epidemia de Covid-19 tem alta capacidade de contágio e propagação, não havendo até o momento vacina ou tratamento disponível capaz de combater o vírus. Por isso, o Ministério da Saúde preconiza a adoção de medidas que visam evitar o contato social. Entre elas destacam-se: fechamento de comércio de bens não essenciais, proibição de eventos, suspensão de aulas e, em casos extremos, proibição da circulação de pessoas.”

Dias depois, em 12 de abril de 2020, o então presidente Jair Bolsonaro declarou: “Parece que está começando a ir embora a questão do vírus”. A advertência sobre os riscos da doença, que consta no documento da Abin, contradiz Bolsonaro. Criada em 1999, a Abin tem como uma de suas atribuições, previstas na lei 9.883/99, obter e analisar dados “para a produção de conhecimentos destinados a assessorar o Presidente da República”.

Atual deputado federal, o diretor da Abin na época da produção do fichamento dos caminhoneiros, Alexandre Ramagem (PL-RJ), foi procurado pela Pública em seu gabinete na tarde desta quarta-feira (24) em Brasília, mas não foi localizado. O gabinete disse que Ramagem estava no Congresso e que iria a comissões da Câmara e a uma entrevista coletiva no Salão Verde. A reportagem esteve nestes lugares, mas não localizou o parlamentar. Foi deixado recado no gabinete sobre a necessidade de ouvi-lo, mas não houve retorno até o fechamento deste texto.

A seguir, a íntegra da nota enviada pela Abin à Pública:

“A Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) acompanha eventos com foco na segurança do Estado. O objetivo é identificar cenários de risco e gerar alertas oportunos acerca de ameaças contra a sociedade relacionadas a, por exemplo, terrorismo, crime organizado e prevenção de crises em setores estratégicos.

A Política Nacional de Inteligência (PNI), publicada pelo Decreto nº 8.793, de 2016, define os parâmetros e limites de atuação da atividade de Inteligência e lista as principais ameaças a respeito das quais a ABIN e o Sistema Brasileiro de Inteligência devem produzir Inteligência.

A ABIN não monitora indivíduos indiscriminadamente, mas cenários nacionais ou internacionais. Ao acompanhar uma ameaça, há a possibilidade de pessoas eventualmente ligadas aos eventos passarem a compor o cenário analisado.”

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