“Esse é um cenário terrível porque esses crimes ocorrem principalmente dentro de casa, onde os pais, os parentes ou responsáveis são os principais autores”, aponta o especialista em segurança pública Arnaldo Conde. Conforme o especialista, as instituições de segurança só possuem conhecimento desse tipo de violência em casos com maior gravidade.
“É difícil identificar porque a família tenta esconder e até mesmo porque as crianças não têm como se defender. Só quando a violência é extrema que ela chega à delegacia”, explica. Para ele, os números de vias de fato/agressão e maus tratos registrados no Estado são preocupantes. “Em ambos, os crimes são diretos contra a pessoa, os dois resultam em violência corporal, por exemplo”, alerta Conde.Durante a semana, a morte do menino Ian Henrique, de 2 anos, no bairro Jaqueline, na região Norte de Belo Horizonte, ganhou repercussão.
O garoto foi socorrido ao hospital Risoleta Neves com lesões na boca, na cabeça e na testa. Ele também estava com a mão esquerda torta e as pernas duras. Ian precisou ser transferido ao hospital João XXIII, onde sofreu duas paradas cardíacas. Ele ficou internado dois dias e morreu durante a madrugada de terça-feira (10).O boletim de ocorrência, registrado pela Polícia Militar, aponta que no João XXIII a equipe médica constatou lesão não visível por toda a cabeça, escoriações no queixo, além de edema na testa.
O caso foi documentado pela polícia como lesão corporal. A suspeita, segundo a mãe de Ian, é de que os ferimentos tenham sido provocados pela madrasta da criança. As agressões foram negadas pela mulher, de 34 anos, mas, no final da noite de terça-feira (10), a Justiça determinou a prisão preventiva dela e do pai do menino, um homem, de 31 anos. Eles vão responder pelo crime de maus-tratos.
“O caso remete ao triste e emblemático precedente de Henry Borel, amplamente divulgado pela mídia. Lamentavelmente, a triste e emblemática história similar ao pequeno Henry Borel se repete, quiçá nos requintes de crueldade, já tendo a criança chegado ao hospital possivelmente com morte encefálica, ‘socorrida’ por seus próprios algozes, à semelhança de Henry Borel”, avaliou a juíza Juliana Beretta Kirche Ferreira Pinto. O caso citado pela magistrada aconteceu em março de 2021, no Rio de Janeiro. Na ocasião, o pai do garoto, o vereador do Rio de Janeiro Dr. Jairinho, e a mãe, Monique, responderam pelo crime na Justiça.
A decisão da juíza considerou ainda a suspeita que a mãe da vítima tinha sobre a madrasta e possíveis omissões por parte do pai. Durante conversa com os militares, ela afirmou que o filho já chegou em sua casa outras vezes machucado e com lesões pelo corpo, inclusive da última vez, com um sangramento no ouvido. A magistrada determinou que a conduta do homem também deve ser apurada ”de modo aprofundado e com os rigores que o caso requer”, considerando as denúncias de maus-tratos feitas pela mãe.Lesão no ouvidoAinda na decisão de prisão preventiva, a juíza afirmou que a mãe do bebê informou que, “pouco antes, (o bebê) já havia apresentado sinais de agressões, inclusive com sangramento no ouvido”. “Declarou ainda a genitora da vítima que seu filho, na mais tenra infância, com apenas 2 anos de idade, não queria ir para a casa do pai e, por tal razão, chorava compulsivamente”, prossegue a denúncia.
Crime de maus-tratos
O crime de maus-tratos está previsto no artigo 136 do Código Penal e pode ter pena de reclusão de até 12 anos. Essa categorização foi incluída a partir do Decreto de Lei 2.848/1940. Conforme o Código Penal, essa infração é definida como qualquer situação de exposição a perigo da vida ou da saúde da pessoa. As vítimas, nesses casos de violência, não se restringem apenas a menores de 18 anos. Esse crime também pode ocorrer com qualquer outra pessoa, desde que essa esteja subordinada a guarda, autoridade ou vigilância de outro envolvido.
“São situações que vão além da violência física. Tem a questão da privação da alimentação, trabalho excessivo ou inadequado, negligência nos cuidados, como abandono, e até mesmo algum abuso com a justificativa de disciplina, podendo ser um bebê ou um até mesmo um idoso”, explica o advogado criminalista e especialista em violência doméstica Leonardo Barbosa. Para ele, a maior parte desses casos ocorre em ambiente doméstico, e as denúncias, normalmente, só são feitas por pessoas próximo à vítima ou ao autor.
“A pessoa começa a desconfiar de uma lesão, de um comportamento. Esses são alguns dos indícios que podem indicar que algo errado está ocorrendo”, relata.As denúncias, ainda que a partir de uma suspeita, ou seja, quando se tem a desconfiança de que algo fora a normalidade esteja ocorrendo, devem ser feitas, inicialmente, junto às polícias Militar ou Civil. Os registros podem ser feitos via 190, com o registro do boletim de ocorrência, ou, por exemplo, na Divisão Especializada em Orientação e Proteção à Criança e ao Adolescente como também na Delegacia Especializada de Proteção e de Crimes contra o Idoso. Para os especialistas, é importante que os denunciantes observem questões como a higiene pessoal e até mesmo a existência de lesões.
“A partir do momento em que a gente tem conhecimento dos casos, a Defensoria Pública entra no processo a fim de garantir que a criança ou o adolescente estejam livres de qualquer situação de risco. Isso é feito independentemente de o responsável legal pela criança solicitar a atuação da Defensoria. O nosso papel é garantir medidas protetivas com base naquilo que é determinado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA”, explica o promotor Heitor Baldez, da Defensoria Especializada dos Direitos das Crianças e Adolescentes.
Em relação ao caso que terminou com a morte do menino Ian Henrique, de 2 anos, a Defensoria Pública, ainda não foi mobilizada, conforme aponta o promotor. “Ao que parece, esse é um processo criminal, e até o momento não fomos comunicados”, explica Baldez. A instituição poderá ser acionada caso a investigação busque identificar a versão apresentada pelo homem, de 31 anos, e pela mulher, de 34, de que os ferimentos no garoto tenham sido provocados por uma criança de 4 anos.
Durante os depoimentos, o casal apresentou essa versão para o crime. A criança que, segundo eles, teria sido responsável pelo ocorrido é filha da mulher e foi diagnosticada com síndrome de West, autismo e outros problemas de saúde.Na última segunda-feira (9), a Polícia Civil de Minas Gerais instaurou um procedimento para investigar o caso.
“O casal foi conduzido e ouvido na Delegacia Especializada de Plantão de Atendimento à Mulher, em Belo Horizonte, onde tiveram ratificada a prisão em flagrante”, informou em nota. Em seguida, eles foram levados para o sistema prisional. A investigação prossegue na Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente. Durante a manhã de quarta-feira (11), o corpo do menino passou por perícia médica no Instituto Médico-Legal.
Caso a investigação classifique o ocorrido como crime de maus-tratos, o casal pode ficar preso por pelo menos quatro anos. Conforme o Código Penal Brasileiro, em crimes como esse, caso a vítima apresente alguma lesão corporal considerada de natureza grave, a punição aplicada é a reclusão de um a quatro anos. Se resulta a morte, a pena passa a ser reclusão de quatro a 12 anos. “Tem ainda a questão de que a pena pode aumentar em até um terço se esse crime for praticado contra pessoa menor de 14 anos”, aponta o advogado Leonardo Barbosa.