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Desigualdade

MG teve três pessoas resgatadas por dia em situação de trabalho escravo em 2022

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Dos 2.575 trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão no Brasil em 2022, 41,5% (1.070) estavam em Minas Gerais, o que representa que, a cada dia do ano, cerca de três vítimas deste crime foram salvas pela fiscalização no Estado. As informações são do jornal O Tempo.

Há 10 anos (desde 2013), as cidades mineiras lideram o ranking nacional e, para se ter ideia, no ano passado o 2º lugar ficou para Goiás, que registrou 271 pessoas resgatadas, ou um quarto dos registros em território mineiro.

Especialistas, porém, avaliam que, apesar do número alarmante, eles também significam que mais ações no sentido de coibir a prática estão sendo feitas em Minas do que em outros Estados. “Até 2013, os índices de fiscalização e libertação em Minas eram muito pequenos. Não havia uma tradição de fiscalização. Porém, em função de um inquérito do Ministério Público Federal (MPF), eu fui chamado para criar um grupo específico de fiscalização do trabalho escravo no Estado e, a partir de então, passamos a contar com uma articulação constante com os demais órgãos envolvidos (Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Militar e sindicatos) e o resultado é visto nesses números. Ao contrário do que possa parecer, o ranking não é negativo, pois demonstra a efetividade de uma política pública integrada”, afirma o Auditor-Fiscal do Trabalho da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE), Marcelo Campos.

Coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Lívia Miraglia também destaca que o número de resgates está diretamente relacionado a mais ações de fiscalização em relação a outras partes do Brasil. Porém, para além disso, o Estado também tem uma espécie de “ambiente propício” para esse tipo de crime. De maneira mais recorrente, os trabalhadores em situação análoga à escravidão são encontrados em fazendas, como em platações de café, milho e alho. A isso, somam-se as péssimas condições financeiras das vítimas, baixa escolaridade e baixo índice de desenvolvimento humano nesses locais.

“Geralmente, as vítimas são pessoas negras e pardas, que vivem em meio a uma pobreza grande. Ninguém se oferece para ser escravizado. Elas vão acreditando na promessa de uma vida melhor. Muitas vezes, só têm isso: acreditar ou morrer de fome”, diz ela.

A partir disso, os trabalhadores se submetem a cenários inimagináveis. Lívia Miraglia explica que para que a situação seja classificada como análoga à escravidão, é necessário que haja uma dessas ocorrências: condições degradantes, jornada exaustiva, servidão por dívida ou trabalho forçado. “A maioria é encontrada em situação degradante: sem água potável, em alojamento precário, onde faltam instalações sanitárias”, afirma ela. “Há casos de pessoas dormindo em galinheiro, no chão”, diz.

Segundo a coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG, em geral, as pessoas não têm ciência de que estão sendo vítimas de um crime. “São pessoas muito simples, que às vezes tiveram uma vida inteira submetida a condições ruins. Elas acabam concordando, achando que é normal”, relata.

Carlindo Souza, de 37 anos, é uma das vítimas resgatadas de condições análogas à escravidão em Iicínea, no Sul de Minas Gerais, no ano passado. Ele, que atuava em uma plantação de café, conta que nunca mais foi o mesmo depois do que passou. “O psicológico fica frustrado. Não está fácil em nada. Não é fácil. Tenho que agradecer a Deus, lógico, por ter saído de lá, e estou ‘pegando’ com Ele para superar”, conta.

Souza chama a atenção para o fato de que muitos trabalhadores resgatados nessas condições muitas vezes continuam em uma péssima situação. Eles não conseguem arrumar emprego, já que em muitos casos não têm experiência comprovada em carteira, e continuam sofrendo com a falta de dinheiro, de boa moradia, entre outras tristes situações.

“Se eu achar que está ruim agora, se eu ainda estivesse lá, estaria pior 10 vezes. Se aquele pessoal não chega para nos resgatar, ave Maria”, diz ele. “Mas o problema também é que a gente depende das migalhas, depende de ser escravizado. Nós precisamos do dinheiro para suprir as necessidades”, conclui.

O que acontece com quem comete o crime

Quando um trabalhador é encontrado em condições degradantes, a primeira ação dos fiscais é notificar o empregador para que a situação seja interrompida, os trabalhadores levados para um local seguro e, por fim, que sejam quitados todos os saldos devidos (salário, rescisão, 13º proporcional, férias, aviso prévio, entre outros direitos trabalhistas). Depois disso, o criminoso é autuado e, caso não consiga provar sua inocência durante o processo administrativo, ele será incluído pelo período de dois anos na chamada “Lista Suja do Trabalho Escravo”.

“Ao constar nesta lista, o Governo tem regulamentos que impedem, por exemplo, a concessão de créditos de financiamento público a estas pessoas ou empresas. Além disso, as empresas, daqui e do exterior, olham esta lista constantemente, pois, em sua maioria, elas não querem ter em sua cadeia produtiva empresas que tenham envolvimento com algo desse tipo, pois podem perder, por exemplo, certificações que valorizam o seu produto”, detalha Maurício Krepsky Fagundes, chefe da DETRAE da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT).

Em 2022, ainda segundo ele, os empregadores flagrados nestas condições pagaram cerca de R$ 8 milhões em verbas trabalhistas devidas aos resgatados. Deste total, R$ 5,4 milhões foram somente em Minas Gerais, sendo que esse número ainda pode mudar, pois fiscalizações ocorreram após o último levantamento.

“A política pública é eficiente em garantir os direitos do trabalhador, já que isso é pago em questão de duas semanas. Quando pensamos que temos uma média de 2 a 3 anos de tramitação na Justiça para o mesmo fim, e pensando que estamos falando de uma classe muito vulnerável, que teria dificuldade até para ter acesso a um advogado, se torna mais importante a presença destes órgãos nestes locais”, argumenta.

Além do processo administrativo, os empregadores que mantiverem trabalhadores em condições análogas à escravidão também poderão responder criminalmente em inquérito da Polícia Federal e do Ministério Público do Trabalho, abertos com base nos relatórios das fiscalizações e enviados à Justiça do Trabalho. O crime tem pena prevista de 2 a 8 anos de reclusão.

“Punição maior poderia coibir a prática”, diz coordenador da Pastoral da Terra

Apesar de já existir uma pena com prisão, segundo um dos coordenadores da Comissão Pastoral de Terra em Minas Gerais, Waldeci Campos de Souza, em anos de experiência ele não se lembra de ter conhecido algum empregador envolvido com o trabalho escravo que tenha sido preso pelo crime. “Não posso afirmar que não existiu, pode ser que alguém foi preso, mas eu, particularmente, não conheço”, disse.

Souza acredita que se os responsáveis fossem efetivamente presos, talvez os números de trabalhadores resgatados começassem a cair em todo o Brasil. “A questão financeira é importante, mas, do ponto de vista do infrator, isso talvez não seja suficiente para coibir. Se as prisões fossem executadas, se fosse inafiançável, provavelmente reduziria esses índices. Estamos em 2023, e, se pensarmos bem, o número de pessoas nessas condições provavelmente é bem maior. O que temos são as pessoas resgatadas, mas quantos outros não chegaram sequer a denunciar?”, pondera.

O coordenador também defende uma punição mais forte para esses empregadores, como a perda do título da terra onde o trabalho escravo for praticado. “As fazendas, por exemplo, se fossem colocadas para o fim da reforma agrária, certamente seria uma medida que levaria a uma diminuição da prática”, disse.

Ele também lembra da importância de se falar do trabalho escravo de empregados e empregadas domésticas, que era invisibilizado até que, nos últimos anos, casos de pessoas que trabalharam por anos em casas de família sem receber qualquer pagamento passaram a vir à tona.

“É um tipo mais difícil de ser identificado, pois acontece no interior das residências. Por isso é muito importante que as pessoas denunciem este crime, para que a fiscalização possa fazer sua parte. Pedimos também que as pessoas pesquisem sobre os produtos que estão consumindo, de onde vêm, se estão vinculados ao trabalho escravo, principalmente pensando no Sul de Minas, que é uma região muito rica no café e que constantemente tem trabalhadores escravizados “, finalizou.

As denúncias de trabalho análogo à escravidão podem ser feitas pela internet, no site da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT).

Chacina de Unaí motivou criação do Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo

Celebrado neste 28 de janeiro, o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo foi instituído após a Chacina de Unaí, crime cometido em janeiro de 2004. Na ocasião, três auditores fiscais do Ministério do Trabalho, além de um motorista, foram mortos em uma emboscada na cidade do Noroeste de Minas. Os três investigam denúncias de trabalho escravo.

Acusado de ser um dos mandantes da Chacina de Unaí, o fazendeiro Antério Mânica foi condenado no ano passado a 64 anos de prisão, no quarto dia de julgamento do caso, mas ele poderá responder em liberdade. Já os matadores foram condenados em 2013, e há outros envolvidos no assassinato.

Na última quinta-feira (26), o Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho (SINAIT) realizou um ato público online pedindo justiça para o caso. “São 6.940 dias marcados pela impunidade, por reviravoltas nos processos, que adiam a prisão de mandantes e intermediários já condenados pela Justiça. Mas também pela luta do SINAIT e dos familiares das vítimas, que resultou na condenação e prisão dos executores – alguns ainda cumprem suas penas”, afirmou a entidade, em nota.

“A luta do SINAIT é para que todos os culpados por este crime bárbaro contra o Estado brasileiro paguem pelo que fizeram”, reafirma o presidente do Sindicato Nacional, Bob Machado.

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