Economia
Sem emprego, professores de Minas Gerais recorrem ao ensino domiciliar
“Fui demitida por telefone, a diretora me ligou e falou que eu estava sendo desligada, porque iriam fechar o maternal na escola. Foram 20 anos de dedicação e amor quase em vão, porque ser professor nesse país é isso, é estar acostumada com a desvalorização e ser descartada em qualquer crise”, desabafa a professora de Educação Infantil, Viviane*, que pediu para não ser identificada.
A crise das escolas privadas devido à pandemia do novo coronavírus tem colocado à prova professores da rede privada. Sem a obrigatoriedade da matrícula – exigida, conforme a legislação, apenas para crianças com mais de 4 anos –, a maioria dos docentes demitidos está no setor da educação infantil, segundo os sindicatos dos professores e das escolas particulares de Minas Gerais. Com dificuldades em pagar os salários por causa da evasão de alunos e com a renda caindo a cada dia, os colégios não tiveram escolha: dispensaram colaboradores ou reduziram salários.
Segundo a Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep), 90% dos contratos para crianças de 0 a 3 anos foram rompidos no país, e há uma estimativa de fechamento de 30% das escolas. “Em Belo Horizonte, esses números devem ser ainda muito maiores, porque ainda temos o problema que o executivo municipal pouco sinaliza um retorno, não tem datas e planos concretos”, destaca a vice-presidente da entidade, Amábile Pacios.
De acordo com a PBH, o retorno da educação infantil está mantido para o próximo mês caso a taxa de contaminação pelo coronavírus na cidade diminua. Mas especialistas são unânimes: o estrago já está feito.
“Além de todas as questões já discutidas exaustivamente sobre a lacuna na educação dessas crianças, fundamentais do ponto de vista psicológico, emocional e motor, temos que levar em conta o abandono profissional. Os próximos anos para os professores são de dificuldades inimagináveis em todo o país, não tem como se manter bons profissionais e boa qualificação. Mesmo que volte, a recuperação é lenta do setor. O Estado também não consegue absorver todos os professores demitidos, o que vamos ter é desemprego”, avalia Amábile.
Atualmente, a incidência de casos de coronavírus em Belo Horizonte é quase 14 vezes maior que do que a considerada ideal para a retomada das atividades presenciais. O número considerado satisfatório para permitir a reabertura das escolas é de 20 casos para cada grupo de 100 mil habitantes. Hoje, esse índice é de 277,6 casos para cada 100 mil habitantes.
“Não tem para onde correr, você estuda e trabalha a vida inteira para um segmento e de uma hora para a outra você fica a mercê da ajuda e da boa vontade da família. Vou entregar meu currículo onde? Há um ano que as escolas estão fechadas. O que eu sei fazer nessa vida é educar”, desabafa a professora do maternal, Lorena Siqueira.
A pedagoga foi demitida em agosto. O motivo alegado para a demissão foi a diminuição de estudantes na rede em que trabalhava. “O ensino remoto não funciona nessa faixa etária, a atenção deles é de 5 a 10 minutos. Fala que vão voltar, mas eu, sinceramente, não vejo luz no fim do tûnel”, afirma a professora, que tem atendido os alunos a domicílio. Ao todo, são dez alunos.
“Eu saio para trabalhar às 06h e volto às 20h, trabalho final de semana se precisar. Precisei me reinventar e fui percebendo que nessa idade existe uma demanda e uma necessidade dos pais também que se faça esse acompanhamento. É nessa faixa etária que se trabalha autonomia, a fala, a convivência, é um dos períodos mais importantes da formação e que tem sido tratado com descaso”, pontua.
O mesmo aconteceu com a pedagoga Ana Paula Barbosa. O que antes da pandemia era um serviço de ajuda apenas para alunos com dificuldades de aprendizagem, hoje, é a alternativa da maioria dos docentes. Mantendo o sustento com aulas particulares, a professora também não tem perspectivas de ser contratada. A solução encontrada por ela e por outras colegas, professoras do maternal, foi ressignificar o trabalho.
“Trabalhava em uma escola particular, era CLT, mas em julho a escola não aguentou e teve que fechar o maternal. Fui demitida. Não acho que tenha culpados na história, mas foi a minha alternativa. É instável, não posso fazer compromissos em comprar nada, não sei quanto foi receber no final do mês, sei também que corro um risco, mas é a minha fonte de renda, eu tenho contas a pagar. Eu não uso isso como complemento”, conta.
Ana Paula então criou o projeto “Amor de Vida”, em que trabalha como uma espécie de coach e terapeuta ocupacional para alunos da educação infantil. A professora comprou materiais de todos os tipos e, quando vai à casa de seus alunos, têm mochila, uniforme e material.
“Meus alunos são os amores da minha vida, sou professora da educação infantil por paixão. Eu me sinto uma artista quando chego nas casas, tem criança que até chora de saudade. Claro que o ambiente ideal é a escola, nada substitui, porque lá existe a socialização, mas é muito importante manter o estímulo e a rotina para essa criança”, conta Ana Paula, que usa máscaras e higienizam os materiais.
“Fiz máscaras personalizadas, eu tenho uniforme, que troco a cada casa, fiz um kit para a criança. Eu já chego nas casas com a maletinha, com o caderno, o estojo, para a criança entender que aquele é o momento deles. Faço uma roda de bom dia para eles me contaram as novidades, os sonhos, os pesadelos e encerro com uma música de relaxamento. É o momento deles acalmarem o coração”, detalha.
Cadê meu professor?
Em Belo Horizonte, as aulas presenciais da educação infantil estão suspensas desde março. Quem sente falta é a Rafaela, de 4 anos. A solução encontrada pela mãe, Maria Tereza Casale, foi contratar uma professora que dá aulas individualmente para ajudar a pequena a fazer as lições e aproximá-la do ambiente escolar.
“Se as escolas voltassem amanhã eu dormiria essa noite na porta da escola. Meus filhos choram de saudade, perguntam dos amigos, dos professores. O meu filho mais velho, de 7 anos, chora de desespero na aula online. Sem uma perspectiva de uma volta às aulas, começamos esse trabalho em novembro, era um encontro por semana, agora são dois encontros por semana de duas horas e se pudesse teria todos os dias. A Rafa está menos ansiosa, e eu, mais tranquila em saber que ela não está perdendo nada ou regredindo, ela está na fase de conhecer as letras e os números”, ressalta.
A pedagoga Cláudia Guimarães se reúne toda semana com Leonardo e Samuel, de 6 anos, e com a Alice, 5. Os pequenos estão no 1º ano. “Eles matam a saudade e eu também. Vou cada vez na casa de um e fico acompanhando nas aulas online, é muito difícil para os pais e para eles essa nova realidade. Dessa forma, eles têm convívio com os colegas, impomos uma rotina, um momento para o lanche e amenizamos essa falta”, explica a pedagoga, que no ano passado fechou sua empresa após 10 anos.
“Eu tinha uma casa de brincar, era um ambiente em que eles faziam atividades extracurriculares, faziam esportes. Foi muito difícil para mim, foi um baque da noite para o dia, eu perdi tudo que eu tinha para conseguir fechar a empresa, estou completamente desestruturada financeiramente”, admite.
Segundo especialistas, a educação infantil é uma das etapas que mais sofrem com a pandemia, com a dificuldade de manter as atividades pedagógicas de forma remota. O debate é sobre o uso de tablets, televisões e computadores já que nesta idade não é indicado exposição às telas.
Para a especialista e mestre em desenvolvimento infantil, Marly Araújo, a educação para a primeira infância se faz por meio da interação com as outras crianças, brincadeiras, algo impossível de ser transportado para o computador.
“A criança aprende por vivência. É nos primeiros anos de vida que se forma o lado afetivo, emocional, motor e até a autoestima. A babá e os pais podem tentar, mas é um professor no ambiente escolar que sabe desenvolver essas potencialidades. Lugar de criança é na escola. O que vemos é que existe uma ‘geração pandemia’ com um apagão educacional. Elas são tidas como os vilões das transmissões, mas na verdade são as vítimas, estão reféns em casa”, reforça.
Preços. O preço e a frequência das aulas particulares variam conforme a idade, a necessidade do aluno e da localização, mas cada aula, com uma hora de duração, custa, em média, entre R$ 80 e R$ 100.
Cenário pode piorar
O Sindicato das Escolas Particulares de Minas Gerais (Sinep-MG) reconhece o grande número de professores desempregados. Mas, de acordo com a entidade, a crise na educação infantil está longe do fim. A estimativa de Zuleika Reis, presidente do Sinep, é que até o final da pandemia pelo menos 60% decretem falência.
“Muitos professores ainda não foram demitidos, porque estavam com estabilidade por causa da medida provisória do governo federal, que permitiu a redução dos salários. Mas o que vemos são escolas sem condições sequer de demitir, porque não tem receita, tem a inadimplência, os pais transferindo os filhos para escola pública, não tem como pagar as indenizações, os acertos. A situação é caótica”, pontua.
O Sindicato dos Professores do Estado de Minas Gerais (SinproMinas) não tem um levantamento de quantos profissionais da educação infantil perderam os empregos, pois, pela lei atual, não há obrigação de homologar esses casos. Mas a presidente da entidade, Valéria Morato, defende que haja a vacinação dos profissionais antes do retorno das atividades presenciais.
“Nós estamos negociando protocolos de retorno, porque não podem ser só sanitários, mas a nossa luta é pela vacinação ampla antes da volta às aulas. Só dessa forma será possível um retorno seguro. Que se incluam os profissionais de educação”, destaca.
Na educação infantil, a responsabilidade da gestão das unidades é de cada prefeitura. Em Belo Horizonte, a PBH cogita dividir o retorno em três fases, começando com a educação infantil. Para essa volta às aulas, são esperados mais de 105 mil crianças.
De acordo com a prefeitura, serão permitidos 12 alunos por turma por um período máximo de quatro horas. Os próximos grupos seriam o ensino fundamental, com crianças de 6 a 8 anos, e, por último, os alunos de 9 a 14 anos.
O retorno, porém, depende ainda do andamento do processo de vacinação na cidade e da permissão da equipe de saúde que faz parte do Comitê de Enfrentamento à doença.
Minientrevista
Nathália Araújo
Subsecretaria de Educação de Belo Horizonte
O que depende para a volta às aulas em Belo Horizonte? Estamos nos preparando para voltar em 1º de março na educação infantil. Será a volta de toda a cidade, da rede municipal, das creches conveniadas e também da rede particular. Os protocolos foram entregues ano passado, a gente depende do índice de circulação viral, é difícil manter crianças pequenas com o distanciamento entre elas, manter o uso permanente da máscara. Hoje, os estudos mostram que as crianças têm uma carga viral menor, mas temos a questão das variações do vírus. Queremos o retorno mais rápido possível, mas seguro.
A volta às aulas está condicionada a vacina dos profissionais? Não, é um retorno que já está sendo estudado antes mesmo da vacina, não depende. Estamos criando padrões para esse retorno. O secretário de saúde já se posicionou para que os profissionais da educação tenham prioridade, é um setor bastante sofrido, as crianças precisam das escolas. O que estamos fazendo é um levantamento do setor público e privado para saber a quantidade exata de profissionais para precisar quantas doses seriam necessárias. Tudo vai depender da disponibilidade da vacinação também.
O que a prefeitura tem feito para contornar a difícil situação da educação infantil? A partir dos 4 anos o ensino é obrigatório, mas realmente para essa faixa etária muitas escolas não conseguiram sobreviver, nacionalmente não se admitiu o ensino remoto, nem na legislação temos isso previsto. O ensino remoto é previsto de forma para o ensino fundamental e médio. Isso criou um vácuo. Para a educação infantil não foi aceito, porque na educação infantil você não desconecta o cuidar do educar, porque é através do carinho e do afeto que você transmite os ensinamentos. Isso criou uma situação difícil, mas na rede Municipal desde o primeiro dia os professores estão em contato com as crianças por telefone para que não se perca essa relação. Nesses 10 meses, os alunos da educação infantil receberam kits pedagógicos, tinha, massinha, não com o objetivo de carga horária, mas para que não eles não se afastassem desse universo. Esse novo vínculo facilita até no processo de volta.
FONTE: Por LETÍCIA FONTES – OTEMPO
FOTO: IMAGEM ILUSTRATIVA WEBED